quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

morre heleieth saffiotti, o que isso significa?

signifca a morte sucessiva de feministas na academia, e da nossa memória. Saffiotti era uma das que ainda resistiam, feministas na academia, em tempos de ESTUDOS DE GÊNERO, que não quer dizer necessariamente ESTUDOS FEMINISTAS. Inclusive o termo gênero foi uma forma de fugir ao estigma de feminismo e de 'neutralizar' o feminismo na academia, processo que chegou a denunciar em seu livro "Gênero, Patriarcado e Violência".

O que a gente tem, cada vez mais, é a produção incessante de um blabalbla vazio pós-moderno e inócuo, maior parte baseado em pensadores masculinos como Foucault, Derrida, Deleuze... Excelentes, incluisve, pelas éticas que preconizam, a ajudar na implantação do projeto [neo]liberal.

Por que assistiu-se, no mundo todo, a um declínio dos Women Studies, ou Estudos Feministas, assim como dos espaços de mulheres? Este ano também morreu Mary Daly, feminista radical, autora de Gin/Ecology, livro base da filosofia feminista radical. Conhecida também, polemicamente, pela proibição de homens nas suas aulas, política também seguida por Sheila Jeffreys. No ELFLAC este ano conversando com algumas ativistas, a política 'oculta' de algumas ativistas é tentar afastar os homens das aulas pelo conteúdo, já que por exemplo algumas universidades como a universidade autônoma do México proíbe esse tipo de política.

Os estudos de gênero proliferam, e dão carreiras pra odiadores de mulheres enrustidos, assim como lésbicas não identificadas com mulheres, que adotam um discurso pós-identitário ou queer, que desloca a questão da identidade política pra um marco novamente sexológico e individual. A identidade política foi substituída pela performance, não obstante algumas boas análises e contribuições dessas autoras como Judith Butler, ao falar da ininteligibilidade e da exclusão do simbólico que são condições que subjetivam sujeitos também denominados por ela de 'corpos abjetos', recusados da humanidade, como trans, drag queens, lésbicas, gays, a comunidade denominada 'queer' em geral, ampliando nossa compreensão.
Heleieth, para escrever sobre a violência, se voltou para as teóricas que chamou de anglo-saxônicas, as feministas radicais norte-americanas e inglesas (hoje sendo a austrália a maior parte dessa produção), assim como as materialistas francesas, que superaram tanto os feminismos da igualdade quanto os da diferença. Podemos dizer que se voltou para autoras que tivessem um marco de análise estrutural (Patriarcado-Capitalismo) e materialista (relações sociais de sexo - termo utilizado pelas francesas, que não usavam o conceito de gênero e que inclusive resistiram a ele. Mathieu: 'não é o gênero que cria o sexo, é o sexo que cria o gênero'. Rubin diz que existe um sistema sexo-gênero, eterno, straussiano, que sempre se produzirá significações de gênero sobre o sexo, o sexo é biologia e o gênero é cultura, por causa do parentesco).


Os estudos de gênero se desenvolveram em cima das autoras do feminismo da diferença, mais ligado à linguagem, e maior parte não feministas, e sim filósofas da linguagem que escreviam sobre o feminino. Julia Kristeva (base de algumas noções da Judith Butler), Helene Cixous, Luce Irigaray, e algo da Teresa de Laurentis (sujeitos ex-êntricos), influenciada por essas autoras mas ainda mais feminista radical, que primeiramente cunhou o termo 'teoria queer', abandonando anos depois dizendo ter sido coptado pelo neoliberalismo.
Então, o que eu tenho a dizer:

não tem mais visão estrutural da questão do Patriarcado, a gente tem que buscar isso lá antes, nos 70, 80, houve uma reação contra os movimentos radicais com a onguificação, com a cooptação dos fundos pra mulheres. Lendo o debate entre algumas feministas após o último ELFLAC, se disse que a Heterosexualidade Compulsória, na sua clássica definição, como sendo a dependência dos recursos masculinos sejam simbólicos ou econômicos, nos força relações de submissão a suas instituições e cultura. Os espaços de mulheres são diluídos, os fundos impôem linhas políticas às organizações feministas na américa latina, que são obrigadas a se tornarem LGBT, já que o trabalho feminista vai CONRTA o patriarcado e o capitalismo, e não a seu favor, saneando esses sistemas, que é o porque das ONGS serem apoiadas pelos estados ou então pelos fundos para mulheres ou lgbt do 1o mundo. A idéia dos fundos com, por exemplo, a exigência de diluir a identidade e corpo denominado mulher, não seria tentar adaptar as organizações de mulheres à organizaçÕes LGBT? Eles conseguem ao transformar as organizações de mulheres, não as lésbicas, agentes do desenvolvimento. 'Direitos Sexuais e Reprodutivos'. E mandam incluir as trans na agenda feminista. As estudiosas de gênero falam: que ultrapassadas somos, mulher não existe, é um discurso. Somos nós, as feministas e as lésbicas políticas, biológicas ou essencialistas. Ou não aceitamos as diferenças entre estes sujeitos. Sim, no neoliberalismo, somos extremamente únicos, já que se preconiza o indivíduo, e não as comunidades e coletividades, nesta ideologia que se impôe à nós sem sabermos, não porque fomos convencidos, mas porque consumimos e vivemos nas relações produzidas economicamente, porque fomos forçados a reproduzir essa ideologia pra podermos sobreviver. Afinal, o sujeito se faz até certo ponto, e o modernismo vende a ilusão de que o sujeito se faz independente das forças históricas, econômicas, sociais e relacionais.

Os ativistas queer oferecem o discurso anti-identidade como forma de resistênca à esse processo estatal. As identidades seriam forma de controle político e social sobre as comunidades. Só se faz política pública definindo identidades e corpos a serem fiscalizados, tratados e nomeados, então definidos, quando eram dissidentes das definições. Boa análise, compartilho.

Porém, eu me pergunto até onde a partir desse novo marco, se radicalizaria, já que não prevêm resistência coletiva, e sim individual. É possível fazer performance, mas unificar-se não mais, somos extremamente fragmentadas pelas nossas diferenças, pelas intersecções de raça, classe, etnia, cultura, e construção de significados dos nossos corpos. Somos só um pacote diluído, sem memória e sem discurso, de siglas. A ''questão de gênero e sexualidade". Essa questão enigmática. As minorias sexuais. Autônomas e flutuantes no espaço, dizem não ter sido subjetivadas por nenhuma categoria social, meros efeitos de discurso, micro-politizadas.
(a melhorar, isto é um rascunho pra não perder o momento já que escrevo minha monografia neste momento).

domingo, 29 de agosto de 2010

Lésbicas, Subjetividade e Patriarcado

foto: Alex Brew

Me proponho a levantar aqui algumas questões de como podemos olhar pra questão da subjetivação das lésbicas num mundo onde o sexismo é constitutivo da estrutura social, e onde a Heterosexualidade se apresenta como organização social da sexualidade que favorece o Poder Masculino e o Capitalismo. Assim sendo, proponho também olharmos para as vidas lésbicas como resistência coletiva à submissão aos homens como classe empoderada nessa organização social sexista, e que vejamos que aquilo que move as atitudes e ações e a presença de uma forte campanha pela eliminação das representações da vida lésbica e censura das expressões de afetividade entre mulheres, com consecutiva perseguição e destruição das memórias e narrativas lésbicas e condenação à clandestinidade à vida de muitas como possuindo motivações políticas, no estabelecimento de um regime de gênero e sexualidade que é importante para o funcionamento adequado do Capitalismo, Imperialismo e da continuidade da colonização e dominação branca.

Quais os impactos de uma sociedade de dominância masculina e seus paradigmas na exclusão da visibilidade e vivências lésbicas, assim como na produção de sua existência? De que forma essa invisibilidade e a hegemonia dos discursos da heterosexualidade, que a definem como modelo ideal de existência, afetam as vivências que não se conformam à ela, e de que forma esses discursos atuam como dispositivos de exclusão e de eliminação dessas mesmas vidas, resultando em uma condição de vulnerabilidade?

Sendo a invisibilidade e o repúdio social as condições marjoritárias que subjetivam estes sujeitos, como a hegemonia patriarcal resultaria em vulnerabilidade psíquica para esta população? Como entender essa vulnerabilização para além do marco biológico?

Defendo que precisamos olhar para essa questão de forma política, e que as lésbicas vivem uma condição política, na medida em que seu modo de vida representa um “ataque direto ao direito masculino de acesso às mulheres” (RICH, 1980), uma definição que abrevia em muito o que podemos entender como sendo o Patriarcado. Isso torna necessário entender as condições em que lésbicas vivem politicamente, o que permite sair dos limites impostos pela perspectiva biológica em Saúde Mental.

A divergência da norma heterosexual é a característica que certamente une essa população, muito mais do que convencionalmente se designa por orientação sexual. As violências e outras sanções à que lésbicas estão expostas revelam que a Heterosexualidade é socialmente instituída, e imposta às mulheres. Essa noção foi desenvolvida por Adrienne Rich em seu artigo “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, de 1980, segundo a qual esta representaria não uma prática sexual ou uma orientação nem um fato natural, mas uma instituição, fundada pelos interesses e prerrogativas masculinas, visando garantir o “direito dos homens ao acesso físico, econômico e emocional às mulheres.” (RICH, 1980)

A lésbica é alguém que escapa às definições prescritas à categoria mulher pela Supremacia Masculina, ou seja como diz Monique Wittig (1970): ” não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente.(...) Somos fugitivas de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando se escapavam da escravidão para se tornarem livres”. O que caracteriza ser mulher, para Wittig, é pertencer a uma categoria que se torna propriedade coletiva dos homens: “Pois o que faz uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que chamamos servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (“residência obrigatória”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação a qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se o seguir sendo heterossexuais.”

O objetivo das sanções impostas à lésbicas é forçar a participação do coletivo de todas as mulheres (independente de se denominarem ou se engajarem em vínculos significativos com mulheres ou não) na Heterosexualidade Compulsória, na vida econômica patriarcal, no casamento e principalmente nas instituições masculinas, punindo com morte as vidas que não são úteis para esses fins. “A heterosexualidade das mulheres pode não ser uma “preferência’ mas algo que teve que ser imposto, manejado, organizado, propagandizado e mantido”. (RICH)

A Heterosexualidade Compulsória pode ser compreendida como algo que integra a política sexual (MILLET, 1970), ou a economia política do sexo, como define Gayle Rubin, um sistema em que mulheres são objetos de trocas sociais, e portanto, estando na condição de serem circuladas, não poderiam jamais receber os benefícios de sua própria circulação. (RUBIN, 1976)

Uma das maneiras principais da heterosexualidade compulsória lograr sua predominância é também segundo Adrienne Rich tornar invisível a possibilidade lésbica, ou distorcer as opções possíveis de vida à todas as demais mulheres. Isso se torna algo importante quando pensamos a invisibilidade, e a subjetivação das lésbicas num mundo onde estas não se vêem. Também, a sabotagem às lésbicas visa a sabotagem de qualquer vínculo entre mulheres, que poderia vir a configurar um campo de resistência, ou a possibilidade de mulheres independente de serem lésbicas ou não, fundarem suas próprias instituições e Cultura. Com esses esforços, ser uma lésbica se torna uma ‘escolha’ tornada arriscada.

Rich cita algumas formas pelas quais essa dominação se mantém: clitorectomia, pena de morte ao adultério feminino, imagens na mídia e na literatura que distorcem as funções vitais das mulheres, violência sexual, prostituição, romantização e idealização das relações heterosexuais na literatura, novelas, propagandas, "a habilidade dos homens de negar a sexualidade das mulheres ou de forçarem a sua sobre os corpos das mulheres; comandar ou explorar seu trabalho para controle e produção; controlar ou extrair as crianças das mulheres; confiná-las fisicamente e constranger seu movimento; usá-las como objetos de transações masculinas; impedir sua criatividade; ou manter fora de acesso delas largas áreas do conhecimento social e das realizações culturais.”

Citando Catherine MacKinnon, Adrienne Rich também argumenta que forçar a heterosexualidade, seu comportamento (relativo à gênero e sexualidade) e as sanções econômicas que sempre esperam àqueles que transgridem à essas expectativas são também uma forma de integrar mulheres no mercado capitalista. Tanto mulheres quanto lésbicas precisam se apresentar adequadamente feminilizadas para uma entrevista ou na manutenção de um emprego. Demissões de lésbicas, formais ou informais, também são constantes. Tanto isso quanto os abusos verbais frequentemente recebidos por muitas mulheres na rua nos dizem que mulheres precisam mostrar estar sob direito de acesso masculino, e também que somente sob o casamento – ou a propriedade exclusiva de um homem – uma mulher estaria protegida.

Além disso, Heterosexualidade Obrigatória acaba por criar uma condição de identificação com os recursos, instituições, valores, cultura e designações masculinos, como uma forma de sobrevivência. A Masculinidade, ou aquilo que é reconhecido tanto por ela, quanto pela Dominância Masculina - a feminilidade, os papéis de gênero, os binários hierárquicos de passividade e atividade, um parceiro sexual, amizade ou outro tipo de aliança masculina - é como uma moeda de maior valor em circulação, ao qual todos sujeitos sob um Patriarcado preferem vincular. O des-empoderamento das mulheres no contexto de uma sociedade heterosexista e anti-mulher, assim como o desprezo e desvalorização do que é designado feminino, faz com que muito do movimento visando o reconhecimento no universo dos signos da masculinidade seja uma busca de sobrevivência, pertinência social, aceitação, valoração. Isso é um movimento que não ocorre somente com as mulheres que escolhem um homem à uma mulher, mas também com lésbicas cujo ódio lesbofóbico internalizado pode muito bem ser lido como ligado também à misoginia social, ou que reproduzem a heteronormatividade em seus relacionamentos. Assim, a existência de uma supremacia masculina também afeta a existência e a visibilidade das lésbicas, que precisam então tanto passar-se como heterosexuais, esconder ou silenciar sua orientação sexual, fugir do estigma de uma identidade não-heterosexual, ou simplesmente negando tal identidade.

Uma expressão da Heterosexualidade Compulsória também é a reivindicação por assimilação neste mesmo sistema cultural e econômico. Muitas vezes a saída para a exclusão e estigmatização é o desejo de acessar as instituições que garantem pertencimento à heterosexualidade, como se esta se confundisse com a própria definição de espaço público e democrático. As saídas que se buscam são muitas vezes as de se integrar ao sistema heterosexual como ele é, como realmente universal e paradigmático. Essas demandas surgem do sentimento de alienação impostos pela mesma heterosexualidade hegemônica, tal como tentativas de redimição.


Susan Hawthorne em um artigo intitulado “Ancient Hatred and Its Contemporary Manifestation: The Torture of Lesbians” (2006) classifica essas violências como uma situação de perseguição e tortura internacional contra lésbicas, e diz: as lésbicas são uma população diaspórica. Impulsionadas por desejo de aceitação, de um lugar ou de encontrar um pertencimento, assim como outras lésbicas, lésbicas migram. Saem de suas cidades natais, de seus países, pra poderem viver suas identidades. Ainda diz:

“A existência lésbica resiste ao nacionalismo. O que poderia significar para uma lésbica ser patriota? (Hawthorne, 2006) Para esta autora, as imigrações podem ser entendidas como um exílio político. Podemos entender os deslocamentos de lésbicas como motivados pelo sentimento de exclusão e pela busca de um lugar de aceitação e pertença, muitas vezes não vividos em suas famílias, comunidades, escolas e outros lugares de origens. Lésbicas muitas vezes vivem um sentimento de alienação em relação ao mundo e à linguagem, carecendo de espaços simbólicos próprios e referenciais onde se reconhecer e encontrar um lugar seu , e até mesmo por meio dos quais poderiam nomear suas existências.

As lésbicas são uma população não somente fugitiva, mas desleais à cultura. As mulheres são um povo colonizado. Diz Sarah Lucia Hoagland em Lesbian Ethics: “os corpos das mulheres são simbolicamente como as terras tomadas, ocupadas e devastadas, o que se faz através da pornografia, da violência sexual coletiva (...), da publicidade que nos usa pra vender produtos, e outros meios, são como uma campanha permanente que afirma ideologicamente os corpos das mulheres como domínios dos homens. (...). Nossos esforços para caber na feminilidade, comprando cosméticos e realizando cirurgias plásticas, consumindo as informações das revistas “femininas”, mostra que mulheres como um povo colonizado integra parte dos esforços para manterem-se como colônias e colonizadas dos homens.”

Hawthorne reforça:

“...você sabe, quando os colonizadores primeiramente entram em um território, eles despossessam as pessoas não apenas de suas terras, mas também de suas culturas” (2006). Isso classificaria a condição feminina em geral. Matar, violar, destruir e queimar, os corpos (como na caça às bruxas durante a era Inquisitorial) e as produções das mulheres ou sua transgressão dos papéis esperados para um colonizado, foram as maneiras de assim, negar sua existência e destruir sua memória e direito a uma subjetividade. Essa campanha anti-mulher e pelo extermínio das lésbicas continua por meio dos já citados meios através dos quais a Heterosexualidade Compulsória garante sua permanência, eficácia e sua legitimação ideológica.

Portanto, compreender a Heterosexualidade Compulsória como um aspecto central pra opressão das lésbicas, e então isso como central na experiência subjetiva destes sujeitos no mundo existente, permite olhar de outra forma o sofrimento psíquico e as expressões de mal-estar que se apresentam nesta população, invertendo a possibilidade de patologizar a sexualidade não-heterosexual como foi sendo feito na literatura médica de forma a naturalizar a monogamia, a vida familiar e a divisão sexual do trabalho, discurso que hoje foi substituído pelo discurso sexológico-individual. Para além de sua naturalização como grupo específico – seja pelo discurso médico ou pelo sexológico – apresenta-se o caráter político das consequências do rechaço social lesbofóbico, e assim re-pensamos o projeto social presente. Temos que ter em conta esses e outros fatores constitutivos do Poder masculino pra analisar os contextos de vida das mulheres lésbicas e seus impactos na saúde mental das mesmas. Pois como escreve Adrienne Rich: “A incapacidade em examinar a heterosexualidade como uma instituição é como incapacidade em admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas do racismo é mantido por um conjunto de forças que inclui tanto violência física quanto falsa consciência”.



Referências:

RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980. Acessível em: http://www.terry.uga.edu/~dawndba/4500compulsoryhet.htm [TRADUZIDO EM: http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf].

WITTIG, Monique. Ninguém nasce mulher. 1980. Acessível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2009/04/ninguem-nasce-mulher.html

MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa; Dom Quixote,1970.

RUBIN, Gayle: Traffic in Women: notes for a political economy of sex. IN: Retter, Rayna R. Towards an antroplogy of women. New York; Monthly Review Press, 1975.

MAKINNON, Catherine. Sexual Harassment of Working Women: A Case of Sex Discrimination (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1979). In RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980.

HAWTHORNE, Susan. Ancient Hatred and it’s Contemporary Manifestations: The Torture of Lesbian. The Journal of Hate Studies, Vol. 4, No. 1: 33-58. Disponível em: http://guweb2.gonzaga.edu/againsthate/Journal4/04AncientHatred.pdf

HOAGLAND, Sarah L. Lesbian Ethics: Toward New Values. Pg. 26 à 39. California: Institute Of Lesbian Studies, 1992.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Lésbicas e Aborto: Qual nossa relação com a questão?

Lésbicas e Aborto: Qual nossa relação com a questão? Por que lesbianas deveriam lutar pelo direito de aborto, direitos reprodutivos? A lesbiana não é concebida justamente como a mulher que radicalmente se opôs à subordinação ao homem, à maternidade e até mesmo à própria categoria mulher?


Podemos começar pensando na noção das feministas de “Heterossexualidade Compulsória”, que designa a presunção da heterossexualidade como hegemonia ideológica no Patriarcado. Frequentemente imaginamos que estamos livres em nossas vidas pessoais como lésbicas, até a hora em que o sistema todo que nos hostiliza diariamente bate à nossa porta. Não estamos nós lesbianas livres do sistema de reprodução, por mais que sejamos lésbicas individualmente ou em nossa comunidade. As pressões para a heterossexualidade permanecem, nos forçando a exercer seus paradigmas no âmbito cultural, nas nossas camas, na linguagem e nos comportamentos que reproduzem os binários hierárquicos e rígidos de gêneros homem-mulher, reproduzindo os sistemas de valores supremacistas masculinos e hetero-patriarcais. Para além disso, as forças dessa mesma Heterossexualidade Compulsória agem por meios institucionais e por violências invisíveis: exclusão social, demissões de lésbicas e homossexuais, restrição de campos de trabalho públicos a transexuais, a propagação de uma idéia de bissexualidade como destino de toda sexualidade lésbica, expressa como uma inadaptação patológica ou temporária ao modelo falocêntrico de sexualidade que se presume ser o correto e natural. Nos sistemas de Saúde, vemos a predominância de uma concepção de saúde da Mulher focada em Direitos Sexuais e Reprodutivos, que visa fiscalização de suas funções como reprodutora e mãe, além de regular o acesso sexual de homens a mulheres, ‘curando’ seus problemas de frigidez, suas dificuldades sexuais e doenças geradas pelo modelo de sexualidade falocêntrico que apenas favorece o homem. Toda ginecologia veio sendo exercida para regular as falhas da prática sexual centrada no intercurso, simbologia importante ao patriarcado por significar apaziguamento e união das classes sexuais que vivem em desigualdade.

Segundo o documento Dossiê da Saúde da Mulher Lésbica, da Rede Feminista de Saúde, lésbicas também estão correndo risco de exposição à gravidez. De acordo com o relatório, apenas 23,4% das mulheres lésbicas tiveram sexo exclusivamente com mulheres em suas vidas e 36,6% relatam parceiros sexuais masculinos nos últimos 3 anos. Na revista virtual XXY, em 2009, foi veiculada a notícia de que lésbicas possuem maior probabilidade de engravidar em relação à suas colegas heterossexuais, que fazem uso de proteções. Isso pode ser lido de muitas formas; uma delas é a de que a identidade lésbica não se resume à prática sexual, mas a toda uma construção pessoal em relação com as instituições e mundo que nos cerca. A invisibilidade lésbica veio sendo a forma mais efetiva do Patriarcado esconder nossas opções de rebeldia, e de invisibilizar lésbicas assim também escondendo de outras lésbicas a possibilidade de reconhecimento de si mesmas. Muitas mulheres vivem durante anos com homens antes de saberem-se lésbicas. A repressão da sexualidade das mulheres também cumpre um grande papel ao vetar a estas o autoconhecimento, já que sexualidade representa um lócus de resistência por estar ligado à vida e aos seus próprios desejos, que nem sempre convergem com os desejos dos projetos colocados para nós pelo capitalismo e expectativas de uma vida produtiva. Os encontros heterossexuais também são mais favorecidos que os encontros lésbicos, que são vividos tantas vezes de forma clandestina. Por questões de clandestinidade, exclusão, não-aceitação familiar, dificuldades de apoio social, estigmatização, preconceito e conflitos subjetivos derivados daí, não são também poucas as lésbicas que vivem com sentimentos de auto-ódio e baixa auto-estima, que detestam a si mesmas por gerarem ‘tantos problemas’ para si e os demais, e que desejam a todo custo se encaixar na vida heterossexual – se casando, fazendo terapias com profissionais irresponsáveis, se expondo a um ato sexual que não desejam ou usando isso como uma das diversas formas de auto-agressão.

Assim, nosso conceito de Saúde não abrange toda população, e aqui nem foi sequer falado das mulheres negras, índias, do campo e trabalhadoras. Não leva em conta a integralidade corpo-e-mente e ainda se calca num modelo biologista, que não enxerga tais dados como indicativos das condições em que vivemos socialmente. Não leva em conta todas as vicissitudes em que vivem as lesbianas, e as expõe ao desamparo assistencial. Não são raras as lesbianas que nunca foram a ginecologistas, outras que relatam experiências de discriminação com profissionais e as que pensam que “nunca vão precisar” de uma consulta ginecológica e que não pegam DSTs e AIDS. Essa idéia reproduz a idéia patriarcal de que a relação entre mulheres não existe, e que estas são um grupo seleto que nunca terá relações com homens.

A Lesbianidade não é uma questão genética para as feministas lésbicas, mas sim uma questão política e, mais além, uma questão ética. Escolher uma mulher para destinar suas energias emocionais e construir projeto de vida representa um sério risco ao Patriarcado hegemônico, e todas as formas de violência e exclusão que estas vivenciam devem ser compreendidas como perseguição a essa classe de mulheres que, como diz Monique Wittig, “tal qual os escravos americanos são fugitivas para tornarem-se livres”. São boicotes ao sistema Patriarcal e àqueles que de alguma forma deste se privilegiam – mesmo que secundariamente – para eliminar o reconhecimento de um movimento de não-conformidade. As lesbianas representam uma idéia perigosa. Precisamos entender os dados de Saúde das populações como expressões de insatisfação e de inadequação, e também como intentos de eliminação de pessoas que possam subverter a ordem hetero-fascista posta. Precisamos nós lesbianas parar de reproduzir o lugar tradicional da feminilidade vitimizada, não arriscada e silenciosa – quando o fazemos cedemos à progressiva invisibilização da nossa gente.

FONTES:
Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas, Rede Feminista de Saúde março de 2006, Belo Horizonte-MG.
WITTIG, Monique; Ninguém Nasce Mulher; The Straight Mind and Other Essays, 1992.
RICH, Adrienne; Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980. EUA.
CLARKE, Cheryl; Lesbianismo, um ato de resistência. IN Esta Puente, mi espalda – Voces de las tercermundistas en los Estados Unidos, MORAGA, Cherríe&Castillo, Ana;, ISM Press, São Francisco-USA, 1988.
CURIEL, Ochy; Pensando o Lesbianismo Feminista, entrevista com Ochy Curiel, Instituto Humanitas Unisinos, 2006.
Jeffreys, Sheila; Lesbian Heresy, Sinifex Express; Melborne-Australia; 1993.

texto escrito para a revista lésbica Visibiles, de Lima-PERU. Versão adaptada para o espanhol em http://issuu.com/visibles/docs/final_visibles2

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Lesbianismo: Um ato de resistência


Cheryl Clarke

• baixe o texto em pdf aqui.

Ser lésbica em uma cultura tão supremacista-machista, capitalista, misógina, racista, homofóbica e imperialista como a dos Estados Unidos é um ato de resistência - uma resistência que deve ser acolhida através do mundo por todas as forças progressistas. Não importa como uma mulher viva seu lesbianismo - no armário, na legislatura ou na rêcamara. Ela se rebelou contra sua prostituição ao amo escravista, que corresponde à fêmea heterosexual que depende do homem. Essa rebelião é um negócio perigoso no patriarcado. Os homens de todos os níveis privilegiados, de todas as classes e cores possuem o poder de atuar legal, moral e/ou violentamente quando não podem colonizar às mulheres quando não podem limitar nossas prerrogativas sexuais, produtivas, reprodutivas, e nossas energias. A lesbiana - essa mulher que "tomou uma mulher como amante"¹ - logrou resistir o imperialismo do amo nessa esfera de sua vida. A lesbiana descolonizou seu corpo. Ela rechaçou uma vida de servidão que é implícita nas relações heterosexistas/heterosexuais ocidentais e aceitou o potencial da mutualidade de uma relação lésbica - não obstante os papéis. *
Historicamente, a cultura ocidental chegou a identificar as lésbicas como mulheres que, através do tempo, têm uma série e variedade de relações sexuais/sentimentais com mulheres. Eu mesma identifico a uma mulher como lésbica quando ela me diz que é lésbica. O lesbianismo é um reconhecimento, um despertar, um re-despertar da paixão das mulheres pelas mulheres. As mulheres, através das épocas, lutaram e foram mortas antes de negar essa paixão.
A síntese recente que desenvolve o lesbianismo e o feminismo - duas ideologias centradas e impulsionadas por mulheres - tenta acabar com o mistério e o silêncio que rodeia o lesbianismo. A análise que segue se oferece como uma incisão pequena contra essa pedra de silêncio e segredos. Dedico esta obra a todas as mulheres ocultadas pela história cujo sofrimento e triunfo fizeram possível que eu possa dizer meu nome em voz alta. **
...
Não há um só tipo de lesbiana, não há apenas um tipo de comportamento lésbico, e não há apenas um tipo de relação lésbica. Igualmente, não há um só tipo de resposta às pressões que as mulheres sofrem para viver como lesbianas. Uma visibilidade lésbica maior na sociedade não quer dizer que todas as mulheres que estão envolvidas com mulheres en relações sexuais-sentimentais se chamem lésbicas nem que se chamem lésbicas e nem que se identifiquem com uma comunidade lésbica específica. O predomínio da homofobia causa a muitas mulheres que se relacionem com uma comunidade específica como lesbianas e que "passem" como heterosexuais enquanto andem entre os seus inimigos. (Esconder-se no armário da pretensão, presunção ou privilégio heterosexual, no entanto, não evita o descobrimento). Outras podem ser politicamente ativas como lésbicas, mas ainda temem expressar abertamente seu lesbianismo enquanto atravessam o território heterosexual. Depois, há mulheres que consistentemente se comprometem com relações sexuais-sentimentais com mulheres e se colocam a etiqueta de "bissexual". (Bi-sexual é um termo mais seguro que o de lésbica porque sugere a possibilidade de uma relação com um homem). Finalmente, há a mulher que é uma lesbiana onde quer que esteja e quando queira, e que está direto e constante confronto com a pretensão, privilégio e opressão heterosexual.
Onde quer que nós como lesbianas nos encontremos ao largo deste muito generalizado contínuo político/social, temos que saber que a instituição da heterosexualidade é um costume que dificilmente morre, e que através desta as instituições de homens supremacistas asseguram sua própria perpetuação e controle sobre nós. Às mulheres se mantêm e contém por intermédio do terror, da violência e da rojada de sêmem. É proveitoso para nossos colonizadores confinar aos nossos corpos e alienarnos de nossos próprios processos vitais, assim como foi proveitoso para os europeus escravizar o africano e destruir toda memória de uma prévia liberdade e auto-determinação - Margaret Walker e Alex Haley, não obstante. ***
Assim como a fundação do capitalismo ocidental dependeu do tráfico de escravos no Atlântico Norte, o sistema de dominação patriarcal se sustenta pela sujeição das mulheres através de uma heterosexualidade obrigada, compulsória. Sendo assim, os patriarcas têm de cultuar o par homem-mulher como algo "natural", afim de manter as mulheres (e os homens) heterosexuais e obedientes, da mesma maneira que o europeu teve que criar o culto da superioridade caucasiana para justificar a escravidão dos africanos. Frente a esse pano de fundo, a mulher que se elege ser lesbiana vive perigosamente.
A lésbica negra, como qualquer outra pessoa de cor nos Estados Unidos, experimenta a sujeição do racismo institucional e pode sofrer igualmente o sexismo homofóbico de sua própria comunidade - especificamente a comunidade "política" negra. Uso o termo descritivo "política" entre aspas porque este segmento da comunidade negra é o que elegeu aprovar publicamente à homofobia, quando em virtude de sua cresibilidade e visibilidade, seus membros podiam ter eleito apoiar os direitos civis, sociais e pessoais das lesbianas negras e dos homosexuais negros. As relações com a comunidade negra se fazem muito problemáticas para as lésbicas negras e os homossexuais quando a comunidade negra contemporânea nos rechaça por nosso compromisso coma libertação lésbica e homossexual.
A maioria das feministas negras estão de acordo que os homens negros, como grupo, têm que examinar e discutir seriamente a opressão histórica das mulheres por homens. Isso foi começado entre alguns negros progressistas. A análise de um pensador e escritor socialista, Manning Marable, reflete uma postura de mudança. Em uma discussão sobre violência, Marable propôe esse desafio aos homens:
"Para que haja possibilidade de que ocorram mudanças fundamentais, a luta contra a violência se têm que fazer por dentro de todos os movimentos sociais progressistas. Os homens teóricos, ou brancos, que não colocam a luta por direitos democráticos e humanos das mulheres no centro de seus postulados sócio-transformativos estão simplesmente duplicando as práticas e os pensamentos predominantes da antiga sociedade civil, racista e capitalista. Através de um processo de autocrítica e de uma re-educação extensa os homens têm que romper com a lógica do que veio significando ser homem, para assim redefinirem-se a si mesmos e às suas relações com as mulheres."

A escritora lésbica negra, Audre Lorde, está de acordo com essa posição a escrever o que segue:
"...Ao homem negro se deve conscientizar que o sexismo e o ódio à mulher são uma disjunção crítica a sua libertação como negros porque emergem da mesma constelação que engendra o racismo e a homofobia. Até que essa conscientização se efetue, os negros verão o sexismo e a destruição das negras como interesses tangentes à libertação Negra, em vez de ser vista como o centro desta luta. Enquanto isso seguir ocorrendo, nunca poderemos começar esse diálogo... que é tão essencial à nossa sobrevivência como povo. Esta cegueira contínua entre nós só pode servir ao sistema opressivo dentro do qual vivemos. " ³



Os negros, como ex-escravos (ou seja, que já não "pertencem oficialmente" aos brancos), têm mais oportunidade para oprimir as negras. Hoje, não têm que competir diretamente com os brancos para controlar os corpos das negras. Agora, os negros podem tomar o papel de "amo"e podem tiranizar sem obstáculos às negras. E assim o fazem os negros. Só temos que ler os noticiários para atestar a violência física que o homem negro descarrega sobre a mulher negra. Em seu papel de "amo", o homem negro livremente descarrega a sua violência e hostilidade sobre a lésbica negra. Ele percebe às lesbianas (que não se deixam manipular pelos homens) da mesma maneira que outros homens - como caricaturas perversas da masculinidade que ameaçam sua dominação sobre o corpo da mulher. Esta percepção, claro, é uma ilusão neurótica sugerida aos homens negros pelas exigências da supremacia masculina, que os homens negros nunca poderão realizar já que lhes falta o capital e o privilégio racial. Ainda que repressivas, sufocantes e tediosas (na minha opinião), as noções ocidentais das relações mulher-homem - que adiantam a supremacia masculina - seguem sendo apoiadas pelo povo negro como uma imposição desejável. Ainda que a lésbica-feminista negra ameace o controle masculino do homem negro sobre a negra, o propósito como ideologia política e filosófica é não aceitar a posição superior do homem negro ou de qualquer outro.
Já que às lesbianas negras não lhes interessa o pênis, nós subvertemos um dos poucos recursos de poder sobre nós - a heterosexualidade. Isso os ameaça. De sua parte os homens negros tratam de intimidar as negras e prevenir que somam-se ao feminismo acusando-as de seres lésbicas. As negras envolvidas nessa luta de libertação, que entendem a necessidade de organizarem-se ao redor de nossa opressão como mulheres, têm que resistir à intimidação e manipulação geradas por meio dessa tática perniciosa.



A lésbica negra, como qualquer outra lésbica nos Estados Unidos, se encontra em todas as partes: no lar, na rua, recebendo ajuda do governo, seguro social, nas filas de desemprego, criando crianças, trabalhando na fábrica, nas forças armadas, na televisão, no sistema de escolas públicas, em todas as profissões, na câmara dos deputados do estado, no Capitólio, assistindo aulas na universidade ou continuando estudos numa pós-graduação, trabalhando na administração, etc. As lésbicas negras, como qualquer outra mulher não-branca e da classe operária e pobre nos Estados Unidos, não sofreram o luxo, o privilégio, nem a opressão de ser dependente de um homem. Ainda que nossa contra-parte masculina tenha estado presente, compartilhando nosso trabalho e luta, nunca estivemos dependendo de seu machismo para que "nos cuide", só com seus próprios recursos. Evidentemente, essa é outra "ilusão neurótica"imposta a nossos pais, irmãos, amantes, e maridos de que eles devem "cuidar-nos" porque somos mulheres. Traduzir: "cuidar-nos" equivale a "controlar-nos". É o único poder de nossos irmãos, pais, amantes, maridos - o seu machismo. E ao menos que a masculinidade não seja embelezada pela pele branca e gerações de riqueza privada, esta possui muito pouco valor no patriarcado racista capitalista.
Tradicionalmente, os negros e negras que se uniam e permaneciam juntos criavam filhos juntos e não tinham o luxo de cultivar uma dependência entre os membros de sua família. Assim que as lésbicas negras, como a maioria as negras nos Estados Unidos, foram criadas para serem auto-suficientes, ou seja, não depender dos homens. Para mim, pessoalmente, o condicionamento para ser autosuficiente e a predominância de mulheres exemplares eminha vida são as raízes do meu lesbianismo. Antes de me fazer lesbiana, frequentemente me perguntava por que se esperava de mim não dar importância, ou evitar e fazer trivial o reconhecimento e o apoio que sentia das mulheres, a fim de perseguir o assunto tênue da heterosexualidade. Não sou a única.
Como lesbianas políticas, ou seja, lesbianas que resistem aos intentos da cultura predominante de nos manter invisíveis e sem poder, temos (especialmente as lesbianas negras e outras mulheres de cor) que nos fazer visíveis a nossas irmãs escondidas em seus vários tipos de armários, encerradas nas prisões do auto-ódio e da ambiguidade, temerosas de tomar esse passo antigo das mulheres que se unem mais além do sexual, do privado ou pessoal.
Não estou tratando de coisificar nem ao lesbianismo nem ao feminismo. Trato de mostrar que o lesbianismo-feminismo tem um potencial de transtornar e transformar um componente maior do sistema da opressão das mulheres, ou seja, a heterosexualidade viril. Se o feminismo-lesbianismo radical se pretende uma visão anti-racista, anti-classista e anti-ódio à mulher que forma uma união mútua, recíproca e infinitamente negociável; uma união livre das antigas prescrições e proscrições da sexualidade, então toda a gente que batalha para transformar o caráter das relações nesta cultura têm algo a aprender das lesbianas.
A mulher que toma a uma mulher como amante vive perigosamente no patriarcado. E, ai dela. Ainda mais se escolhe como amante a uma mulher que não é de sua raça. O silêncio entre as lesbianas-feministas no tocante ao tema das relações lésbicas entre mulheres negras e brancas na América é causa do velho tabu de séculos e às leis nos Estados Unidos contra as relações da gente de cor e da raça caucasiana. Falando heterosexualmente, as leis e tabus foram um reflexo do intento do amo escravista patriarcal de controlar sua propriedade ao controlar sua linhagem através da instituição da monogamia (só para as mulheres), e ao justificar os tabus e as leis com o argumento de que a pureza da raça caucasiana teria de preservar-se (tanto como sua supremacia). Entretanto, sabemos que suas leis e tabus racistas tanto como raciais não se aplicavam a ele com respeito a sua relação com a escrava negra, assim como suas leis classistas e tabus a respeito da relação entre a classe dominante e os serventes obrigados pelo contrato, não se aplicavam a ele quando decidia violar sexualmente a sua serventa branca. Os descendentes de qualquer uma das uniões entre amo branco da classe predominante e da escrava negra ou da serva branca não podiam legalmente herdar a propriedade nem o sobrenome de seu progenitor branco ou da classe predominante, somente herdavam a servidão de suas mães.
O tabu contra as relações entre a gente negra e branca fora da relação amo-escravo, superior-inferior e propagou na América pra evitar que as negras e negros, brancas e brancos, que compartilham uma opressão em comum nas mãos do homem branco da classe predominante, se organizem contra essa opressão em comum.
Devido a sua brancura, se deu a branca de todas as classes, assim como ao negro devido ao fato de ser homem, certos privilégios no patriarcado racista. A negra, sem ter nem a masculinidade nem a brancura, sempre teve uma heterosexualidade que os homens brancos e negros manipularam à força e à vontade. Ademais, ela, como toda a gente pobre, teve seu trabalho que o homem branco capitalista roubou e explorou a sua vontade. Esta capacidade permitiu a negra um acesso mínimo às migalhas que se concedem aos negros e às mulheres brancas. Assim, pois, quando as negras e as brancas tentam unir-se - seja politica, emocional ou sexualmente - traímos essa história e todas essas questões à relação. O tabu contra a intimidade entre a gente branca e negra foi internalizada por nós e simultaneamente foi desafiada por nós. Se nós, como lesbianas-feministas, desafiamos ao tabu, então começamos a transformar a história das relações entre as negras e as brancas.
Devido à presença, trabalho e tenacidade das lesbianas-feministas (tanto como as análises de interesses múltiplos e o ativismo), muitas lesbianas-feministas brancas começaram a qustionar e mudar suas atitudes racistas e a extender sua perspectiva do feminismo. Por certo, a luta das lesbianas-feministas negras para obter visibilidade catalizou a outras lésbicas-feministas (por exemplo, outras mulheres de cor e judias) a identificar formas relacionadas com seu racismo, como preconceitos culturais e anti-semitismo no movimento das mulheres. Todas juntas trabalhamos para apagar o estereótipo do movimento feminista como exclusivamente branco, de classe média, heterosexual, e dominado por mulheres entre as idades dos 25 e 35 anos, porque estivemos reclamando nosso território nele. Em seu ensaio compreensivo e fundamental, "Hard Ground: Jewish Identity, Racism and Anti-Semitism"("Terra dura: A identidade judia, o racismo e o anti-semitismo"), Elly Bulkin reflete sobre sua decisão de efetuar mudanças em suas crenças anti-racistas que chegaram a ser uma lição e um modelo para seu ativismo sobre anti-semitismo:
"...Por certo, qualquer atenção que foi dada ao racismo pelas feministas brancas foi resultado de mais de uma década de trabalho de mulheres de cor que constantemente e ruidosamente exigiram que se atente ao racismo dentro e fora do movimento de mulheres. Ainda que eu tenha sustentado que essa idéia por muito tempo, por exemplo, que o racismo tanto como outras opressões, eram injustiça, não tenho nenhuma ilusão de que eu teria começado a atuar sobre essa crença anti-racista sem a presença das mulheres de cor." 4
Os temas mais importantes para mim neste período da minha vida são as relações com as mulheres e meu trabalho. E nesta época do Reaganismo e do atrincheiramento da direita radical, me preocupo com as ameaças a esses direitos. Uso a palavra "Direitos" conscientemente e ainda considero a facilidade relativa com que eu possa ser uma lesbiana nos Estados Unidos como uma liberdade tênue. Também estou consciente dos que não possuem as mesmas alternativas que eu tenho e que têm que viver essas alternativas no armário. Essencialmente, meu trabalho e minhas relações são semelhantes à Nicaragua - em perigo de serem destruídos. Por certo, a ameaça não é tão imediata nem mortal como os bombardeios aéreos pelos contra-revolucionários financiados pelos Estados Unidos, mas a ameaça prevalece apesar de tudo. Recordem a decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos em 30 de junho de 1986 de manter as leis assinadas pelo estado cotnra a sodomia (Bower vs. Hardwick).****
Embora muita da cerceadura e repressão nos Estados Unidos não têm "lesbiana" escrito sobre elas, sabemos que nos afetarão como lesbianas, porque estamos na resistência. Quando as mulheres, gente de cor, trabalhadores e revolucionários se os ataca, se ataca às lesbianas. Asim pois ainda temos que lutar, e ainda temos que educar.
É uma de minhas esperanças como lesbiana-feminista que mais mulheres agora e no futuro, devido a nossa visibilidade, trabalho e energia, ponham mais valor nas suas relações com mulheres e elijam abertamente ao lesbianismo - como uma política, como um modo de vida, como uma filosofia e como um plano vital.


1. Judy Grahn, "The Commom Woman", The Work of a Commom Woman (A obra de uma mulher comum).Oakland, CA; Diana Press, 1978), p. 67.
2. Manning Marable, "The Cultural Dialectics of Violence"("A dialética cultural da violência), From the Grassroots: Social and Political Essays Towards Afro-American Liberation (Desde as bases: ensaios políticos e sociais para a libertação afro-americana), Boston: South End Press, 1980, p. 107.
3. Audre Lorde, "Sexism"An American Disease in Blackface"("O sexismo: uma doença americana com máscara negra"), Sister Outsider: Essays and Speeches (Irmã estrangeira: Ensaios e discursos) Trumansburg, NY: The Crossing Press, 1984, p. 64.
4. Elly Bulkin, "Hard Ground: Jewish Identity, Racism, and Anti-semitism" ("Terra dura: A identidade judia, o racismo e o anti-semitismo") em E. Bulkin, M. P. Pratt, B. Smith, eds., Yours in Struggle: Three Feminists Perspectives on Anti-Semitism and Racism (Contigo na luta: três perspectivas feministas sobre o anti-semitismo e racismo), Ithaca, NY: Firebrand Books, 1984, p. 146.


*Se refere aos papéis masculino/feminino, ou 'butch'/'femme' que as lésbicas às vezes tomam e que parecem refletir os papéis tradicionais de homem/mulher na relação heterosexual.
** Em particular, quero dar meu agradecimento à "Declaração do Coletivo do Rio Combahee". Este documento se converteu em um manifesto de pensamento, ação e prática feminista radical ao adotar "a luta contra a opressão racial, sexual, heterosexual e classista".
***Margaret Walker, autora de Jubilee(Júbilo, Nova Iorque: Bantam, 1960) e Alex Haley, autor de Roots (Raízes, Garden City, NY: Doubleday, 1976) são dois escritores afro-americanos cujas novelas históricas tentam reconstruir o passado afroamericano.
****A Corte Suprema dos EUA decidiu que a Constituiçao não dá proteção às relações homossexuais entre adultos conformes, ainda que na privacidade de seus lares. A decisão mantém que a lei do estado da Georgia que proíbe a todos que engajem em atos sexuais orais e anais pode ser usada pra processar tal conduta entre os homossexuais. A Corte se negou a decidir se a Constituição protege aos casais casados ou outros heterosexuais que sejam processados através dessa mesma lei ou não.
A afroamericana Cheryl Clarke foi uma das editoras de Conditions, uma revista feminista de Nova Iorque. Ela é autora de dois livros de poesia, Narratives: Poems in the Tradition of Black Women (Narrativas: Poemas na Tradição das Mulheres Negras, New York: Kitchen Table/Women of Color Press, 1983) e Living as a Lesbian (Vivendo como uma lésbica, Ithaca, NY: Firebrand Books, 1986). Recentemente terminou um livro de poemas narrativos intitulado, Scarred Rocks (Pedras Cicatrizadas). Atualmente é professora na Universidade de Rutgers, New Jersey.
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Artigo retirado do livro "Esta Puente, mi espalda - Voces de las tercermundistas en los Estados Unidos"(Esta ponte, minhas costas, originalmente "This Bridge Called my Back": Vozes das mulheres terceiro-mundistas nos Estados Unidos), editado e traduzido por Cherríe Moraga e Ana Castillo, ISM Press, São Francisco-USA, 1988.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mulher, Povo Colonizado - Parte 1


Em seu livro revolucionário de 1949, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir pergunta, “por que as mulheres não disputam a soberania dos homens?”. Sua pergunta pressupõe uma teoria filosófica em particular acerca da natureza e interação humana desenvolvida por Hegel. Essa teoria é a de que cada consciência (pessoa) mantém uma hostilidade fundamental

direcionada a qualquer outra consciência, e que cada sujeito (pessoa) se coloca como Essencial ao se opor a todos os Outros. Ou seja, que as relações humanas são fundamentalmente antagônicas, e que a hostilidade é recíproca. Aquele que não obtém sucesso em se opor a um Outro se vê obrigado a aceitar os valores do outro, e então se torna submisso a ele. Agora, ao perguntar por que as mulheres não contestam a soberania dos homens, Simone de Beauvoir está perguntando por que as mulheres não se opuseram antagonicamente aos homens da mesma forma que os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros. Ao fazer essa pergunta, ela sugere que (1) as mulheres nunca se opuseram aos homens e, portanto, são submissas não porque “perderam para os homens”, mas sim por terem aceitado uma posição de subordinação, e (2) que para alcançar o stat

us de sujeito, para resistir à dominação dos homens, entre outras coisas, as mulheres devem se opor aos homens como os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros.


Ao discutir a subordinação das mulheres, Simone de Beauvoir argumenta que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra”. A característica básica da mulher é ser fundamentalmente o Outro. Portanto, as mulheres “conquistaram” a

penas o que os homens estavam dispostos a conceder, e nada tomaram. Simone de Beauvoir sugere razões para isso: as mulheres carecem de meios concretos ou organização; as mulheres não possuem passado ou história própria; as mulheres têm vivido dispersas entre os homens; e as mulheres solidarizam com os homens de sua classe e raça. Ela aponta, por exemplo, que mulheres brancas se aliam aos homens brancos, não às mulheres negras. Ela acrescenta que renunciar o status de Outro é renunciar os privilégios conferidos através da aliança com uma casta superior. Ela conclui: “Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.” Em outras palavras, de acordo com a Simone de Beauvoir, mais uma razão pela qual as mulheres não contestaram a soberania dos homens e afirmaram o direito à sua própria existência é a de que as mulheres não estão completamente insatisfeitas em ser definidas

como Outro. Simone de Beauvoir então discute como tudo isso se deu, porque, como ela afirma: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Alguém não nasce uma mulher porque “mulher” é uma categoria construída. E está intimamente ligada à categoria “homem”.


Embora eu não concorde que as mulheres sempre estiveram submetidas aos homens e também que para resistir à soberania dos homens as mulheres devem agir como eles, ainda assim uma relação básica de dominação e subordinação parece existir entre homens e mulheres, e não é claro, com algumas exceções notáveis desde o início do Patriarcado, que mulheres resistiram essa relação. [nota: duas exceções notáveis recentes são as beguinas européias e comunidades femininas chinesas] Em minha o

pinião, a fim de avaliar plenamente essa relação de dominação e subordinação nós precisamos nos ater não apenas à abordagem do sexismo, ou até mesmo da homofobia ou heteross

exismo, mas, principalmente, da relação do heterossexualismo em si. [nota: O que denomino heterossexualismo não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Eu estou me referindo a um completo estilo de vida promovido e aplicado por todas as instituições formais e informais da sociedade dos Patriarcas, da religião à pornografia, ao trabalho doméstico não-remunerado à medicina. O heterossexualismo é um estilo de vida que normaliza a dominação de uma pessoa e a subordinação de outra. A relação entre mulheres e homens é considerada, dentro do pensamento anglo-europeu, como sendo a base da civilização. Eu concordo. E ela normaliza aquilo que é “essencial” à civilização anglo-européia a tal ponto que nós deixamos de perceber a dominação e subordinação em qualquer das suas capacidades “

benevolentes” como sendo errada ou nociva: a relação “amorosa” entre homens e mulheres, a relação “pretetora” entre imperialistas e colonizados, a relação de “manutenção da paz” entre a democracia (capitalismo dos EUA) e ameaças à democracia. Eu acredito que, a menos que o heterossexualismo como um modelo de relação seja destruído, sempre permanecerão, na consciência social, conceitos que validam a questão.]


Compreender o sexismo envolve a análise de como o poder institucional está nas mãos dos homens, de como os homens discriminam as mulheres, de como a sociedade classifica os homens como a norma e as mulheres como passivas e inferiores, de como instituições masculinas objetificam as mulheres, de como a sociedade exclui as mulheres da participação como seres humanos plenos, e de como o que tem sido entendido como comportamento masculino normal é também violência contra as mulheres. Em outras

palavras, analisar o sexismo é compreender primariamente como as mulheres são vítimas do comportamento masculino institucionalizado e normalizado.


Compreender o heterossexismo, bem como a homofobia [nota: Celia Kitzinger sugere que paremos de usar “homofobia”. Ela argumenta que o termo não surgiu do movimento de libertação das mulheres, mas sim da disciplina acadêmica da Psicologia. Ela questiona a caracterização do medo heteropatriarcal das lésbicas como algo “irracional”, ela questiona a orientação psicológica (ao invés de política) da “fobia”, e ela observa que, dentro da Psicologia, a única alternativa para a homofobia é o humanismo liberal.], envolve a análise, não apenas da vitimização das mulheres, mas também de como as mulhe

res são definidas em relação aos homens ou então inexistentes, de como lésbicas e homens gays são tratados – verdadeiros bodes expiatórios – como perversos, de como as escolhas de parceiros íntimos tanto para mulheres e homens são restringidas ou negadas por via de tabus a fim de manter uma determinada ordem social. (Por exemplo, se as relações sexuais entre homens fossem abertamente permitidas, então os homens poderiam fazer com os homens o que eles fazem com as mulheres e, então, [alguns] homens se tornariam o que as mulheres são. Isso é proibido. Ademais, se o amor entre as mulheres fosse abertamente expl

orado, as mulheres poderiam simplesmente se afastar dos homens, tornando-se “não-mulheres”. Isso, também, é proibido.) Concentrar-se no heterossexismo desafia a heterossexualidade como instituição, mas isso também pode induzir as lésbicas a encarar como um objetivo político nossa aceitação, assimilação até, na sociedade heterossexual: nós tentamos afirmar para os heterossexuais que somos normais (ou seja, iguais a eles), que eles são injustos ao nos estigmatizar, que é uma mera preferência sexual.


No seu estudo revolucionário sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich nos desafia a encarar a heterossexualidade como uma instituição política que garante o direito dos homens do acesso físico, econômico e emocional às mulheres. Jan Raymond desenvolve uma teoria da hetero-realidade e argumenta: “embora eu concorde que nós vivemos em uma sociedade heterossexista, pen

so que a questão mais ampla é a que nós vivemos em uma sociedade hetero-relacional na qual muito das relações pessoais, sociais, políticas, profissionais e econômicas das mulheres são definidas pela ideologia de que a mulher existe para o homem.” Eu vou um pouco além.


Compreender o heterossexualismo envolve a análise da relação entre homens e mulheres na qual tanto homens quanto mulheres possuem um papel. O heterossexualismo significa homens dominando e tornando as mulheres inaptas a variadas atividades de diversas formas, desde ataques diretos a cuidados paternalistas, e mulheres desvalorizando (por necessidade) a criação de laços entre mulheres bem como encontrando conflitos inerentes entre compromisso e autonomia e, consequentemente, valorizando uma ética da dependência. O heterossexualismo é um estilo de vida (que os praticantes apresentam em gradações variadas) que normaliza a dominação de uma pessoa em uma relação e a subordinação da outra. Como resultado, o heterossexu

alismo debilita a agência feminina.


O que eu chamo de “heterossexualismo” não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Ele é um completo estilo de vida que envolve um equilíbrio delicado, embora às vezes rude, entre a predação masculina e proteção masculina de um objeto feminino da atenção masculina. [nota: Penso que o modelo principal de interação pessoal para mulheres e lésbicas tem sido heterossexual. No entanto, para os homens na tradição anglo-européia, também tem havido um modelo de interação masculina homossexual – uma forma de criação de vínculos entre homens, muito embora o sexo entre homens tenha sido abominado. E embora não seja a minha intenção aqui analisar esse modelo, eu sugiro que ele gira em torno de um eixo de dominação e submissão, e que o heterossexualismo é basicamente um modelo homossexual masculino refinado.] O heterossexualismo é uma relação econômica, política e emocional particular entre homens e mulheres: o

s homens devem dominar as mulheres e as mulheres devem se subordinar aos homens de várias formas. [nota: Julien S. Murphy escreve: “A heterossexualidade é mais bem denominada heteroeconomia, pois ela se relaciona com a linguagem do intercâmbio, troca, barganha, leilão, compra e venda... A heterossexualidade é a economia da troca na qual uma estrutura de poder baseada em gênero continuamente se estabelece através da apropriação do partido desvalorizado em um sistema dual de gênero. Tal estabelecimento ocorre através de cada instância de ‘fazer um negócio’ no mercado do sexo.”] Como resultado, os homens presumem acesso às mulheres enquanto que as mulheres permanecem ligadas aos homens e são incapazes de manter uma comunidade de mulheres.


Nos EUA, as mulheres não podem aparecer em público sem que alguns homens se aproximem delas presumindo acesso às mesmas. De fato, muitas mulheres pensarão que algo está errado

se isso não acontecer. Uma mulher é simplesmente alguém a quem tal comportamento é apropriado. Quando uma mulher está acompanhada por um homem, no entanto, ela geralmente não é mais considerada “mercadoria disponível”. Como resultado, homens próximos a mulheres – pais, namorados, maridos, irmãos, acompanhantes, colegas – se tornam protetores (em teoria), inviabilizando aproximações de outros homens.


O valor da proteção especial para com as mulheres é prevalente na nossa

sociedade. Protetores interagem com as mulheres de maneiras que promovem a imagem da mulher como indefesa: homens abrem portas, puxam cadeiras, esperam que as mulheres se vistam de forma que interfiram na sua própria auto-proteção. E as mulheres aceitam isso como comportamento atencioso e elogioso, e vêem a si próprias como pessoas que necessitam de atenção e proteção especiais. [nota: Ao questionar o valor da proteção especial para mulheres, eu não estou dizendo que as mulheres nunca deveriam pedir ajuda. Isso é tolice. Eu estou falando sobre o ideal das mulheres como necessitadas de abrigo/suporte externo contínuo. O conceito de que crianças precisam de proteção especial é prevalente e eu contesto esse conceito quando ele

é utilizado para anular sua integridade “para seu próprio bem”. Mas, ao menos, a proteção para crianças envolve em teoria garantir que crianças [meninos] possam crescer e aprender a cuidar de si próprios. Ou seja, crianças [meninos] são protegidas até que tenham crescido e desenvolvido habilidades e proficiências que necessitam a fim de viver nesse mundo. Nenhuma expectativa como essa está incluída no ideal de proteção especial para mulheres: esse ideal não inclui a expectativa de que as mulheres estarão algum dia na posição de cuidar de si próprias (crescer).]


O que uma mulher se depara em um homem é ou um protetor ou

um predador, e os homens estabelecem suas identidades através de um ou outro desses papéis. Isso tem no mínimo cinco conseqüências. Primeiro, não pode haver protetores a menos que exista um perigo. Um homem não pode se identificar no papel de protetor a menos que exista alguém que precise de proteção. Então, é no interesse dos protetores que existam predadores. Segundo, para serem protegidas, as mulheres devem estar em perigo. Ao retratar as mulheres como desamparadas e indefesas, os homens retrata as mulheres como vítimas... e, portanto, como alvos.


Terceiro, uma mulher (ou garota) é vista como objeto da excitação masculina,

e, dessa forma, sua causa. Isso fica claro no caso do estupro: ela deve ter feito algo para tentá-lo – pobre criatura hormonal que ele é. Portanto, se as mulheres são seres que por natureza estão em perigo, obviamente, elas são seres naturalmente sedutores – elas ativamente atraem predadores. Quarto, para serem protegidas, as mulheres devem concordar em agir como os homens ditam às mulheres que devem agir: parecer femininas, provar que não são ameaçadoras, ficar em casa, ficar apenas com o protetor, desvalorizar suas ligações com outros mulheres e por aí vai.


Finalmente, quando as mulheres se desvirtuam do papel feminino se tornando

ativas e “culpadas” [nota: Na sua análise dos contos de fadas, Andrea Dworkin aponta que uma mulher ativa é retratada como má (a madrasta) e uma mulher boa está geralmente dormindo ou morta (Branca de Neve, Bela Adormecida).], é uma mera questão de lógica que os homens as retratem como vis e aumentem a violência física evidente contra elas a fim de reafirmar o status de vítima das mulheres. Por exemplo, à medida que a demanda pelos direitos das mulheres no EUA se tornou publicamente perceptível, a imagem de mulheres sozinhas como “putas” convidando ataque também se tornou prevalente. Uma mulher sozinha pedindo carona é vista não como alguém a ser protegida, mas como alguém que abdicou de seu direito à proteção e, portanto, como alguém que é um alvo para ataque. O grande aumento de pornografia – entretenimento produzido por e para homens sobre mulheres – é a resposta generalizada dos homens à demanda do movimento de libertação das mulheres por integridade, por autonomia e dignidade.


O que as feministas radicais expuseram através de toda a sua pesquisa sobre incesto (estupro da filha) e espancamento de esposas é que os protetores são também predadores. Obviamente, não todos os homens são espancadores de esposas ou namoradas, porém mais da metade daqueles que vivem com mulheres são. E, também, um número significativo de casa de família nos EUA abriga um homem “incestuoso”.


Embora homens possam demonstrar preocupação sobre o abuso de mulheres, eles possuem uma relação com o abuso diferente daquela das mulheres; suas preocupações não são as preocupações das mulheres. Por exemplo, frequentemente homens ficam furiosos com o fato de que uma mulher foi estuprada ou espancada por outro homem. Porém, isso seria ou o homem se posicionando em seu papel de pro

tetor – raramente, se alguma vez, lhe ocorre ensiná-la auto-defesa – ou um homem profundamente afetado por danos causados à sua “propriedade” por outro homem. E, enquanto que alguns homens sintam desprezo por homens que espancam ou estupram, Marilyn Frye sugere que é bem possível que o seu desprezo surja não do fato de que o abuso da mulher está ocorrendo, mas sim do fato de que o abusador ou estuprador precisa recorrer à força para obter aquilo que eles próprios obtém mais sutilmente pela arrogância.


A corrente disposição dos homens no poder de aprovar leis restringindo a pornografia é uma questão de homens tentando restabelecer a imagem assexuada e virginal de (algumas) mulheres que eles podem então proteger em suas casas. E eles estão usando em sua defesa mulheres da direita bem como feministas que parecem estar pedindo proteção, como mulheres direitas, ao invés de exigindo libertação. Os homens usam da violência quando as mulheres não prestam atenção a eles. Então, quando as mulheres pedem prote

ção, os homens podem encontrar motivações ao perseguir os predadores – particularmente aqueles de uma raça ou classe diferente.


Em outras palavras, a lógica da proteção é essencialmente a mesma da predação. Através da predação, os homens fazem coisas com as mulheres e contra as mulheres que as violam e minam sua integridade. No entanto, a proteção objetifica tanto quanto a predação. Para proteger mulheres, os homens fazem coisas com e contra ela; agindo “pelo próprio bem de uma mulher”, eles violam sua integridade e minam sua agência.


A proteção e a predação surgem da mesma ideologia de dominância masculina, no sentido de que é indiferente à sustentação bem-sucedida da dominação masculina qual das duas condições as mulheres aceitam. Portanto, Sonia Johnson afirma: “Nossa convicção de que se cessarmos de estudar e monitor

ar os homens e suas mais recentes loucuras, que se deixarmos de “arranhar” aterrorizadas e chutar, alternado com choramingos e apego exagerado – toda a nossa relação sadomasoquista doentia com os Mestres – eles ficarão furiosos e nos matarão é pura superstição. Com nossos olhares fixos neles, eles nos matam diariamente; com nossos olhares cravados nesses, eles ficam furiosos."


Algumas das primeiras feministas radicais afirmaram que mulheres são colonizadas. Vale a pena considerar essa afirmação. Aqueles que desejam dominar um grupo e que são bem-sucedidos obtêm controle através da violência. Essa demonstração de força, no entanto, requer esforços e recursos tremendos; então, colonizadores introduzem valores retratando a relação do colonizador dominante com o colonizado subordinado como natural e normal.


Uma das primeiras ações dos colonizadores após a conquista é controlar a linguag

em, trabalho esse frequentemente realizado por missionários cristãos. Sua missão é dar à linguagem uma forma escrita e então erguer escolas onde ela é ensinada aos nativos da terra. Aqui, novos valores são introduzidos: por exemplo, conceitos de “claro”/”iluminado” e “escuro”/”negro” com as conotações de “bom” e “mau”, respectivamente. Palavras para superiores e divindades então passam a carregar uma conotação “clara”, bem como aparecer no gênero masculino. Ademais, valores são incutidos os quais apóiam a apropriação colonial de recursos naturais, e negam os costumes ancestrais e independência econômica do colonizado. À medida que os colonizados são forçados a utilizar a linguagem e esquema conceitual dos colonizadores, eles podem começar a internalizar esses valores. Essa é a “salvação”, e os colonizadores aplicam a doutrina daquilo que chamaram Destino Manifesto ou “fardo do homem branco”.


A teoria do Destino Manifesto implica que os colonizadores estão trazendo civilização (a versão secular da salvação) aos “bárbaros” (“pagãos”). Os colonizadores retratam os colonizados como passivos, como desejando e precisando de proteção (dominação), como sendo cuidados “para seu próprio bem”. Qualquer um que resista à dominação será visto como anormal e atacado como um risco à sociedade (“civilização”) ou chamado de louco e isolado em nome da proteção (dele mesmo ou da sociedade).


Dessa forma, os colonizadores passam da predação – ataque e conquista – à proteção benevolente. Aqueles que foram colonizados são retratados como desamparados, infantis, passivos, e femininos; e os colonizadores se tornam governantes benevolentes, aceitando o fardo da administração “civilizada” de recursos (exploração).


Depois que a ordem social foi estabelecida, caso os colonizados comecem a r

esistir à proteção e benevolência, insistindo que eles preferem fazer tudo por si mesmos, independente das conseqüências imediatas, os colonizadores mais uma vez se tornarão predadores, aumentando a violência para convencer os colonizados de que eles precisam de proteção e que eles não conseguem sobreviver sem os colonizadores. Uma das frases atribuídas a Mahatma Gandhi no filme Gandhi de importância para esse argumento: “A fim de manter a benevolência e nos dominar, vocês devem nos humilhar”. Quando tudo falha, os homens partirão para a guerra para afirmar sua “masculinidade”: seu “direito” de conquistar e proteger mulheres e outros seres “femininos” (ou seja, qualquer um que eles possam dominar).


O objetivo da colonização é a apropriação de recursos estrangeiros. A colonização funciona tornando um povo inapto e economicamente dependente. Em seu livro sobre colonialismo, Como a Europa Subdesenvolveu a África, Walter Rodney argumenta que as sociedades africanas não teriam se tornado capitalistas sem o colonialismo branco. Sua tese é a de que a África estava progredindo economicamente de uma maneira distinta do desenvolvimento pré-capitalista até que os europeus chegaram para colonizar a África a subdesenvolvê-la. Restringindo o desenvolvimento da economia africana, e a reconstruindo para alcançar seus objetivos, os europeus destituíram os africanos de seus terras e recursos. Além disso, os europeus destituíram os africanos de suas habilidades econômicas autônomas, primariamente ao transformar o sistem

a educacional e ensinar os povos africanos a rejeitar o conhecimento de seus ancestrais. Essa desabilitação dos povos conquistados é crucial para a dominação, pois ela significa que os colonizados se tornam dependentes dos colonizadores para a sua sobrevivência. Na verdade, entretanto, são os colonizadores que não conseguem sobreviver – como colonizadores – sem os colonizados.


Bette S. Tallen sugere que, de forma semelhante, as mulheres foram desabilitadas/castradas sob o heterossexualismo, tornando-se economicamente dependentes dos homens, enquanto que os homens se apropriam dos seus recursos. Como Sonia Johnson aponta: “de acordo com estatísticas das Nações Unidas, embora as mulheres executem dois terços do trabalho no mundo, nós ganhamos apenas um décim


o da renda mundial e somos donas de apenas um centésimo das propriedades do mundo”. A desabilitação das mulheres varia dependendo de condições históricas e materiais específicas. Por exemplo, na sua análise da Grã-Bretanha pré-industrial do século XVII, Ann Oakley observa que mulheres assumiam muitas profissões quando separadas de seus maridos, ou quando viúvas. A revolução industrial mudou tudo isso e privou muitas mulheres de suas habilidades. Anteriormente a isso, durante os tempos da caça às bruxas, os homens europeus se apropriaram das habilidades de cura, parto, ensino das mulheres, e tentaram destruir as suas habilidades psíquicas. [nota: Atualmente, os homens estão tentando controlar as capacidades reprodutivas das mulheres ao controlar os órgãos reprodutivos femininos e processos femininos.] Como Alice Molloy escreve, “a suposta história da feitiçaria é simplesmente o processo pelo qual as mulheres foram separadas umas das outras e do seu potencial para sintetizar informação”. Em geral, muitas mulheres não mais possuem seus próprios projetos, elas perderam o acesso a suas próprias ferramentas. Como resultado, elas são coagidas a adotar uma ideologia de dependência dos homens.


O heterossexualismo possui certas similaridades com o colonialismo, particularmente na sua manutenção por via da força quando o paternalismo é rejeitado (ou seja, o aumento da predação dos homens quando as mulheres rejeitam sua proteção), e na sua representação da dominação como natural (os homens dominam as mulheres tão “naturalmente” quanto os colonizadores dominam os colonizados, e sem nenhuma noção de se próprios como estando a oprimir aqueles que dominam exceto durante os momentos de agressão evidente) e na desabilitação das mulheres (tornando-as inaptas de diversas formas a variadas atividades). E, da mesma que são os colonizadores que não conseguem sobreviver como colonizadores sem os colonizados, são os homens que não conseguem sobreviver como homens (protetores ou predadores) sem as mulheres.


Complementando a função de protetor/predador dos homens, está o conceito de “mulher”, particularmente como ele opera na sociedade mainstream dos EUA. Consideremos do que esse conceito carece. Ele carece (1) uma noção do poder feminino, (2) qualquer sugestão de que as mulheres como um grupo têm sido alvos da violência dos homens, (3) qualquer sugestão da resistência feminina, tanto coletiva quanto individual, à dominação e controle dos homens, e (4) qualquer noção do vínculo lésbico.


O conceito de “mulher” não inclui nenhuma noção verdadeira de poder feminino. Certamente, ele não inclui nenhuma noção de mulheres como forças conquistadoras e comandantes. De forma mais significativa, ele não inclui nenhuma noção de força e competência. Eu não estou negando que existem muitas mulheres fortes. E, quando as mulheres encorajam umas às outras em desafio à avaliação dominante, imagens significativas aparecem. Mas, com o passar do tempo sob o heterossexualismo, essas imagens tendem a ser modificadas por apelos à feminilidade ou são utilizadas contra as mulheres. Sem uma suficiente deferência aos homens, as mulheres perceberão que os conceitos de “vaca castradora”, “sapatão” ou similares são utilizados para mantê-las na linha.


Homens de um determinado grupo modificam parcialmente a “feminilidade” a fim de enfatizar a competência e a habilidade femininas quando eles realmente precisam de ajuda extra: durante guerras – Rosie the Riveter, por exemplo [nota: Ícone cultural americano da segunda grande guerra. Ela representa as milhares de mulheres que trabalharam em fábricas durante a produção de armamento militar para a Segunda Guerra Mundial.]; em fazendas pequenas; em movimentos revolucionários; em kibbutzim, onde o Estado é instável; em uma comunidade profundamente dividida sob opressão, etc. Porém, uma vez que o seu domínio está estabelecido de forma mais sólida, os homens retomam o estereótipo feminino (ao mesmo tempo que esperam que as mulheres executem a maior parte de seus trabalhos sem receber nenhum benefício – trabalhos domésticos, por exemplo).


No seu artigo sobre mulheres negras nas cidades, Pat Robinson relaciona a perda da auto-consciência e poder de um povo com a perda de suas divindades. Ela afirma, “para que um grupo seja controlado, é preciso que sejam tomados seus deuses, suas próprias reflexões acerca de si mesmos, e sua consciência interior”. Quando encontramos referências a deusas de qualquer cultura na cultura anglo-européia dominante, elas estão sendo raptadas ou estupradas, e/ou são mães. [nota: Existem muitas outras deusas além das deusas da fertilidade e da maternidade. Há deusas da caça, da tecelagem, da sabedoria, das mudanças, do inverno, da floresta, da terra, dos mortos, da justiça, do amor, da comida, do sol, do fogo, da escrita, da aurora, da vingança, da menarca, da lua, do mar, dos vulcões, e das bruxas e da mágica – citando apenas algumas. Ademais, há motivos para acreditar que deusas obesas, como a Vênus de Willendorf, representavam não maternidade, mas sim poder: as camadas de gordura eram camadas de poder.] De forma significativa, a única figura feminina presente no pensamento anglo-europeu é a Virgem Maria, resquício de uma antiga deusa, transformada em uma vítima-modelo de estupro, com a reputação de ter dito a um deus, “faça-se em mim segundo a tua vontade”.


Pat Robinson prossegue observando que, para controlar um povo, enquanto que um grupo deve tomar-lhes suas próprias reflexões acerca de si mesmos, ele deve primeiramente utilizar de força. (Isso, obviamente, é o processo inicial de colonização.) A segunda carência no conceito de “mulher” é uma noção de que a força é utilizada contra as mulheres como um grupo. A literatura feminista tem discutido o massacre das bruxas na Europa. Alguém poderia perguntar como uma destruição em massa poderia ser erradicada da consciência coletiva. Talvez ela tenha sido simplesmente suprimida. Porém, quando uma ordem social requer a exterminação de um determinado grupo, e essa exterminação é virtualmente bem-sucedida, a memória subseqüente desse processo pode ser erradicada ao ser renomeada. O massacre das bruxas na Europa por um período de mais de trezentos e cinqüenta anos sofreu essa renomeação. A caricatura das bruxas nos “ataca” anualmente na forma de um evento da mídia de massa nos EUA: o Halloween.


O uso da força ou violência contra as mulheres como um grupo não esteve limitada à Europa. Mary Daly, entre outras, procurou trazer à consciência feminista dos EUA o fato de que tal força foi e continua a ser usada contra as mulheres em todas as partes do mundo. E embora a prática dos assassinatos das viúvas indianas tenha sido reconhecida como um problema, isso ocorreu apenas porque os homens no poder recentemente o denominaram um problema. Da mesma forma, embora na China os pais tenham considerado que a atadura dos pés não é economicamente útil e, portanto, “imoral”, nossa memória e consciência do que levou a essa prática e por que ela foi perpetuada por tanto tempo está desaparecendo. Também, o infanticídio feminino assumiu sua posição como uma expressão de misoginia.


Uma vez que é inexistente a noção de que a violência tenha sido alguma vez direcionada às mulheres como um grupo, é difícil ter uma perspectiva da magnitude da força utilizada contra as mulheres atualmente. Enquanto que mulheres nos EUA podem ficar horrorizadas com o espectro da mutilação genital africana e as mortes das viúvas indianas, estudantes africanas (particularmente nigerianas) e indianas nas turmas para as quais leciono ficam não menos horrorizadas com a incidência de estupro e a quantidade de pornografia que constituem uma parte diária das vidas as mulheres nos EUA. Com exceção das feministas radicais, ninguém nos EUA percebe a incidência fenomenal de incesto (estupro da filha), espancamento da esposa, estupro, prostituição forçada e a ideologia da pornografia – retratada não apenas nas revistas masculinas, mas na televisão, outdoors, em supermercados, em escolas, e em geral em todo setor público e privado que uma mulher freqüenta – como uma forma de ataque orquestrado contra as mulheres. Não existe uma noção geral de que, como Sonia Johnson aponta, os homens tenham declarado guerra contra as mulheres; pelo contrário, esse ataque – já que os homens prestam atenção às mulheres – é nomeado “atração”, até mesmo “admiração”.


Em terceiro lugar, o conceito de “mulher” não inclui uma noção de resistência feminina – coletiva ou individual – à dominação masculina. Embora existam evidências de que amazonas tenham vivido na África do Norte, na China, na Anatólia (Turquia) e entre o Mar Negro e o Mar Cáspio [nota: Em 1979, o Chicago Sun-times, por exemplo, relatou a descoberta dos restos mortais de uma tribo de amazonas que viveu há 2500 anos na República da Moldávia. Arqueólogos soviéticos encontraram uma “mulher guerreira, seu cavalo de guerra, uma lança, brincos de ouro e outros adornos” em um terreno de enterro próximo à vila de Balabany.], as amazonas são tratadas repetidamente como uma piada ou algo do passado. Porém, como Helen Diner escreve: “Nas celebrações em honra dos mortos, Demóstenes, Lísias, Himérios, Isócrates e Aristides glorificam a vitória sobre as Amazonas como sendo mais importante do que aquela sobre os Persas ou qualquer outro feito na história... As guerras entre os Gregos e Persas foram guerras entre duas sociedades dominadas pelos homens. Na guerra contra as Amazonas, a questão era qual das duas formas de vida iria moldar a civilização européia à sua imagem.” De forma significativa, até mesmo feministas e feministas lésbicas evitam a idéia das amazonas, aparentemente por receio de parecerem alheias à realidade (ao consenso). Com algumas exceções notáveis, nós não estamos respondendo ao chamado de Maxine Feldman, “Mulheres amazonas, ergam-se.” Há pouca celebração das amazonas (embora nós estejamos começando a ouvir novamente sobre deusas e bruxas). Nós não reconhecemos as amazonas nem mesmo como defensoras simbólicas das mulheres – e isso em um tempo em que a violência dos homens contra as mulheres é evidente. Ao invés disso, até mesmo feministas radicais fazem pressão por maior proteção da polícia e do Estado. As amazonas – bem como as guerreiras femininas como aquelas nas sociedades dahomey ou nootka – simplesmente não se enquadram dentro do conceito de “mulher” da sociedade mainstream dos EUA.


Uma vez que não há nenhuma memória mitológica, muito menos histórica, da resistência feminina à dominação dos homens, atos isolados e individuais de resistência feminina são também tornados imperceptíveis como resistência, particularmente, como eu argumento abaixo, através do conceito de “feminilidade”. Uma “mulher” é alguém cuja identidade se dá através da sua aliança com um homem a tal ponto que qualquer mulher que resiste à violência masculina, aos avanços dos homens e ao acesso exigido pelos mesmos não é uma mulher de verdade.


O valor da “mulher”, portanto, exclui uma noção da presença, habilidade e poder femininos, de uma consciência de que violências têm sido e são perpetradas contra as mulheres como um grupo, e uma noção da resistência feminina à dominação masculina. Ele também exclui uma noção do vínculo lésbico. Adrienne Rich assumiu a tarefa de abordar (1) a ideologia “através da qual a experiência lésbica é entendida em uma gradação de desviante a abominável, ou simplesmente tornada invisível”; (2) “como e por que a escolha das mulheres por mulheres como companheiras amorosas, parceiras, colegas, amantes, comunidade, tem sido esmagada, invalidada, forçada ao acobertamento e a ser mascarada”; e (3) “a invisibilização em potencial ou total em uma gama de textos, incluindo aqueles da cultura feminista.” Como escreve Harriet Ellenberger: “Um tabu central no Patriarcado é o tabu contra mulheres unindo-se a mulheres – e, no entanto, essa união, aliança, ligação tornadas tabu têm ocorrido e continuam a ocorrer bem debaixo de seus narizes, e homens e a maioria das mulheres não pensam que elas são reais.”


O que o conceito de “mulher” inclui é igualmente significativo. Segundo a denominação masculinista das mulheres, uma “mulher” (1) é alguém que se identifica com homens, cuja identidade surge através de sua relação com o homem, (2) é alguém que se faz atraente aos homens, (3) é um objeto a ser conquistado pelos homens e (4) é uma reprodutora (de meninos).


A identidade de uma mulher é incorporada na sua relação com o homem: ela é antes de tudo e principalmente a mãe, esposa, amante, ou filha de algum homem e não de uma mulher. Como as Radicalesbians argumentaram em 1970: “Nós somos autênticas, legítimas, verdadeiras contanto que sejamos a propriedade de algum homem cujo nome carregamos. Ser uma mulher que não pertence a nenhum homem é ser invisível, patética, não-autêntica, não-verdadeira.” Uma mulher que não pertence a nenhum homem, ou não existe ou está tentando ser um homem. Ademais, uma “mulher” é responsável pela prestação de serviços sexuais aos homens. Se ela é boa ou má, qual o seu status ético, está baseado em sua disponibilidade sexual, preço e fidelidade aos homens. Em última análise, uma “mulher” é uma virgem ou uma puta – ou seja, ligada a um homem através do sexo.


Em segundo lugar, uma “mulher” é alguém que é atraente para os homens. Se ela não tenta se fazer atraente para os homens, considera-se que ela tem um problema sério. Na sociedade mainstream dos EUA, ser atraente significa que ela é caucasiana, de classe média-alta, praticamente anoréxica (isso é, doente), e jovem o bastante para não possuir rugas na sua face, embora ocasionalmente ela possa ser negra e “exótica”. Aquelas mulheres que não se enquadram nessas categorias, embora não sejam completamente descartas como mulheres, são, não obstante, forçadas a se sentir como substitutos ruins de uma mulher. [nota: Em outras partes do mundo, padrões diferentes podem se aplicar. Em alguns lugares, ser católica é essencial para a identidade da mulher, ou ser gorda, ou ser negra, não pálida. O modelo de “mulher” em termos da manifestação física tende a aderir aos valores dos homens no poder em um determinado local.] Além disso, uma “mulher” é alguém que deve ser protegida do que é mau (ou seja, “negro”) a menos que ela própria seja negra (ou seja, má) – nesse caso, outras mulheres devem ser protegidas dela. Quanto mais branca ela é, mais pura. Quanto mais negra ela é, mais perigosamente sexual. Novamente, ela é uma virgem ou uma puta – ou seja, branca ou negra.


Em terceiro lugar, uma “mulher” é alguém que deve ser conquistada por um homem. A ideologia da pornografia, de soft porn a snuff retrata uma mulher como um objeto (um receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser atacado e vencido), alguém que existe para ser dominada. Ela é caracterizada pelo seu desejo sexual, e ela é dominada através da violação – violão esta que ela deverá vir a desejar. A ideologia do romantismo (retratada popularmente nos romances de arlequim) é a mesma: uma mulher é um objeto (receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser protegido e seduzido), alguém que existe para ser conquistado. Ela é caracterizada por sua falta de desejo sexual – ela deve rejeitar as iniciativas sexuais (do homem) a fim de demonstrar o seu pudor; e, dessa forma, os homens sabem que quando ela diz “não”, na verdade ela quer dizer “sim”. Portanto ela, também, é dominada através da violação – violação da sua integridade –, violação esta que ela repentinamente começa a desejar. Tanto a pornografia quanto o romantismo nos dizem que uma mulher deve ser conquistada e dominada pela força da vontade do homem.


Finalmente, uma “mulher” é uma reprodutora. Uma mulher se realiza através da reprodução, sua possibilidade ética básica é a doação e o cuidado altruísta, e qualquer coisa que interfira com esse processo é suspeita. Além disso, nas ocasiões em que um povo está ameaçado porque os homens travam guerras, os homens ressaltam a reprodução excluindo todo o resto, e a supervisionam cuidadosamente. Nas sociedades anglo-européias, eurasiáticas e todas nas sociedades mainstream estadunidenses (central, do sul e norte), essa função não pode ser controlada por ela. Seu corpo não é seu para decidir sobre ele. A questão do aborto, por exemplo, como é abordada nos EUA, não é uma questão da mulher. Pois a questão diz respeito simplesmente a quais homens irão controlar os abortos das mulheres – o Estado ou homens individuais. E médicos exercendo sua preocupação paternalista pela ordem social esterilizam mulheres que consideram mães inadequadas, como mulheres negras pobres e porto-riquenhas. Uma “mulher” é uma reprodutora, e reprodutoras precisam de protetores que tomam as decisões sobre a reprodução, incluindo reconstrução genética. Ademais, obviamente, quando uma mulher procria com sucesso, o que ela procria é masculino – ou seja, alguém que perpetua a linhagem do seu marido.


Uma “mulher”, portanto, é um objeto sexual essencialmente submisso a e dependente dos homens, alguém cuja função é perpetuar a raça (enquanto protetores e predadores põem em prática seu projeto de destruí-la). Não, ninguém nasce uma “mulher”.


[nota: Não é acidental que justamente à medida que a exigência feminista por direitos novamente obteve reconhecimento do público, aqueles no poder desviaram a atenção ética para a biologia – dessa vez, a sociobiologia. Aqui, entre descrições alegadas “objetivas” do comportamento animal, E. O. Wilson afirma que é um “fenômeno quase universal que machos são dominantes sobre fêmeas entre os animais.” Em parte alguma Wilson defende essa afirmação; ao invés disso, ela aparece adquirir corpo à medida que ele simplesmente descreve os fatos. Por exemplo, ele utiliza a palavra “harém” para descrever uma comunidade de babuínos hamadryas na qual as fêmeas são aterrorizadas à submissão e lealdade por um macho ameaçador. Entretanto, ele também utiliza esse termo para descrever comunidades centradas em fêmeas tais como as ovelhas montanhesas. O rebanho de ovelhas montanhesas é centrado nas fêmeas, fêmeas “herdam” os espaços de outras fêmeas, e as fêmeas permitem que apenas alguns machos tenham contato com elas – e isso apenas durante a temporada de acasalamento. Porém, pelo uso de Wilson da palavra “harém”, a pessoa que está lendo fica com a impressão de que os machos dominam as fêmeas nessa comunidade.

De forma significativa, Wilson considera a sociedade dos babuínos hamadryas como um modelo de desenvolvimento supremo (de heterossexualismo) em vertebrados superiores. Ele descreve fêmeas ameaçadas e atacadas como “cônjuges” que foram “recrutadas”; e se elas escapam, de acordo com ele, elas “se desviaram”. Em outra parte do livro, Wilson denomina os estágios iniciais desse comportamento ameaçador do macho como sendo “proteção”.

Talvez, a linha de raciocínio mais reveladora de Wilson surja quando ele alterna a frase “ação receptora da fêmea” com a frase “comportamento submisso da fêmea.” Através dessa equivalência, ele implica que, simplesmente ao praticar heterossexo, as fêmeas são dominadas pelos machos. Wilson descreve as fêmeas que não praticam heterossexo como sendo “tias solteironas”, ou como sendo “anti-sociais” se elas tentam escapar (como o fizeram as babuínas-anubis fêmeas que, em um experimento, cientistas puseram em uma comunidade de hamadryas). Uma vez que fêmeas fazendo sexo com machos é “natural”, presume-se logicamente que a dominação do macho é “natural”. Em suma, sob o paradigma conceitual vigente (patriarcal), a penetração do macho equivale à dominação do macho.]


Eu desejo uma revolução moral.



[Traduzido de Lesbian Ethics - Sarah Lucia Hoagland]