quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mulher, Povo Colonizado - Parte 1


Em seu livro revolucionário de 1949, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir pergunta, “por que as mulheres não disputam a soberania dos homens?”. Sua pergunta pressupõe uma teoria filosófica em particular acerca da natureza e interação humana desenvolvida por Hegel. Essa teoria é a de que cada consciência (pessoa) mantém uma hostilidade fundamental

direcionada a qualquer outra consciência, e que cada sujeito (pessoa) se coloca como Essencial ao se opor a todos os Outros. Ou seja, que as relações humanas são fundamentalmente antagônicas, e que a hostilidade é recíproca. Aquele que não obtém sucesso em se opor a um Outro se vê obrigado a aceitar os valores do outro, e então se torna submisso a ele. Agora, ao perguntar por que as mulheres não contestam a soberania dos homens, Simone de Beauvoir está perguntando por que as mulheres não se opuseram antagonicamente aos homens da mesma forma que os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros. Ao fazer essa pergunta, ela sugere que (1) as mulheres nunca se opuseram aos homens e, portanto, são submissas não porque “perderam para os homens”, mas sim por terem aceitado uma posição de subordinação, e (2) que para alcançar o stat

us de sujeito, para resistir à dominação dos homens, entre outras coisas, as mulheres devem se opor aos homens como os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros.


Ao discutir a subordinação das mulheres, Simone de Beauvoir argumenta que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra”. A característica básica da mulher é ser fundamentalmente o Outro. Portanto, as mulheres “conquistaram” a

penas o que os homens estavam dispostos a conceder, e nada tomaram. Simone de Beauvoir sugere razões para isso: as mulheres carecem de meios concretos ou organização; as mulheres não possuem passado ou história própria; as mulheres têm vivido dispersas entre os homens; e as mulheres solidarizam com os homens de sua classe e raça. Ela aponta, por exemplo, que mulheres brancas se aliam aos homens brancos, não às mulheres negras. Ela acrescenta que renunciar o status de Outro é renunciar os privilégios conferidos através da aliança com uma casta superior. Ela conclui: “Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.” Em outras palavras, de acordo com a Simone de Beauvoir, mais uma razão pela qual as mulheres não contestaram a soberania dos homens e afirmaram o direito à sua própria existência é a de que as mulheres não estão completamente insatisfeitas em ser definidas

como Outro. Simone de Beauvoir então discute como tudo isso se deu, porque, como ela afirma: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Alguém não nasce uma mulher porque “mulher” é uma categoria construída. E está intimamente ligada à categoria “homem”.


Embora eu não concorde que as mulheres sempre estiveram submetidas aos homens e também que para resistir à soberania dos homens as mulheres devem agir como eles, ainda assim uma relação básica de dominação e subordinação parece existir entre homens e mulheres, e não é claro, com algumas exceções notáveis desde o início do Patriarcado, que mulheres resistiram essa relação. [nota: duas exceções notáveis recentes são as beguinas européias e comunidades femininas chinesas] Em minha o

pinião, a fim de avaliar plenamente essa relação de dominação e subordinação nós precisamos nos ater não apenas à abordagem do sexismo, ou até mesmo da homofobia ou heteross

exismo, mas, principalmente, da relação do heterossexualismo em si. [nota: O que denomino heterossexualismo não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Eu estou me referindo a um completo estilo de vida promovido e aplicado por todas as instituições formais e informais da sociedade dos Patriarcas, da religião à pornografia, ao trabalho doméstico não-remunerado à medicina. O heterossexualismo é um estilo de vida que normaliza a dominação de uma pessoa e a subordinação de outra. A relação entre mulheres e homens é considerada, dentro do pensamento anglo-europeu, como sendo a base da civilização. Eu concordo. E ela normaliza aquilo que é “essencial” à civilização anglo-européia a tal ponto que nós deixamos de perceber a dominação e subordinação em qualquer das suas capacidades “

benevolentes” como sendo errada ou nociva: a relação “amorosa” entre homens e mulheres, a relação “pretetora” entre imperialistas e colonizados, a relação de “manutenção da paz” entre a democracia (capitalismo dos EUA) e ameaças à democracia. Eu acredito que, a menos que o heterossexualismo como um modelo de relação seja destruído, sempre permanecerão, na consciência social, conceitos que validam a questão.]


Compreender o sexismo envolve a análise de como o poder institucional está nas mãos dos homens, de como os homens discriminam as mulheres, de como a sociedade classifica os homens como a norma e as mulheres como passivas e inferiores, de como instituições masculinas objetificam as mulheres, de como a sociedade exclui as mulheres da participação como seres humanos plenos, e de como o que tem sido entendido como comportamento masculino normal é também violência contra as mulheres. Em outras

palavras, analisar o sexismo é compreender primariamente como as mulheres são vítimas do comportamento masculino institucionalizado e normalizado.


Compreender o heterossexismo, bem como a homofobia [nota: Celia Kitzinger sugere que paremos de usar “homofobia”. Ela argumenta que o termo não surgiu do movimento de libertação das mulheres, mas sim da disciplina acadêmica da Psicologia. Ela questiona a caracterização do medo heteropatriarcal das lésbicas como algo “irracional”, ela questiona a orientação psicológica (ao invés de política) da “fobia”, e ela observa que, dentro da Psicologia, a única alternativa para a homofobia é o humanismo liberal.], envolve a análise, não apenas da vitimização das mulheres, mas também de como as mulhe

res são definidas em relação aos homens ou então inexistentes, de como lésbicas e homens gays são tratados – verdadeiros bodes expiatórios – como perversos, de como as escolhas de parceiros íntimos tanto para mulheres e homens são restringidas ou negadas por via de tabus a fim de manter uma determinada ordem social. (Por exemplo, se as relações sexuais entre homens fossem abertamente permitidas, então os homens poderiam fazer com os homens o que eles fazem com as mulheres e, então, [alguns] homens se tornariam o que as mulheres são. Isso é proibido. Ademais, se o amor entre as mulheres fosse abertamente expl

orado, as mulheres poderiam simplesmente se afastar dos homens, tornando-se “não-mulheres”. Isso, também, é proibido.) Concentrar-se no heterossexismo desafia a heterossexualidade como instituição, mas isso também pode induzir as lésbicas a encarar como um objetivo político nossa aceitação, assimilação até, na sociedade heterossexual: nós tentamos afirmar para os heterossexuais que somos normais (ou seja, iguais a eles), que eles são injustos ao nos estigmatizar, que é uma mera preferência sexual.


No seu estudo revolucionário sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich nos desafia a encarar a heterossexualidade como uma instituição política que garante o direito dos homens do acesso físico, econômico e emocional às mulheres. Jan Raymond desenvolve uma teoria da hetero-realidade e argumenta: “embora eu concorde que nós vivemos em uma sociedade heterossexista, pen

so que a questão mais ampla é a que nós vivemos em uma sociedade hetero-relacional na qual muito das relações pessoais, sociais, políticas, profissionais e econômicas das mulheres são definidas pela ideologia de que a mulher existe para o homem.” Eu vou um pouco além.


Compreender o heterossexualismo envolve a análise da relação entre homens e mulheres na qual tanto homens quanto mulheres possuem um papel. O heterossexualismo significa homens dominando e tornando as mulheres inaptas a variadas atividades de diversas formas, desde ataques diretos a cuidados paternalistas, e mulheres desvalorizando (por necessidade) a criação de laços entre mulheres bem como encontrando conflitos inerentes entre compromisso e autonomia e, consequentemente, valorizando uma ética da dependência. O heterossexualismo é um estilo de vida (que os praticantes apresentam em gradações variadas) que normaliza a dominação de uma pessoa em uma relação e a subordinação da outra. Como resultado, o heterossexu

alismo debilita a agência feminina.


O que eu chamo de “heterossexualismo” não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Ele é um completo estilo de vida que envolve um equilíbrio delicado, embora às vezes rude, entre a predação masculina e proteção masculina de um objeto feminino da atenção masculina. [nota: Penso que o modelo principal de interação pessoal para mulheres e lésbicas tem sido heterossexual. No entanto, para os homens na tradição anglo-européia, também tem havido um modelo de interação masculina homossexual – uma forma de criação de vínculos entre homens, muito embora o sexo entre homens tenha sido abominado. E embora não seja a minha intenção aqui analisar esse modelo, eu sugiro que ele gira em torno de um eixo de dominação e submissão, e que o heterossexualismo é basicamente um modelo homossexual masculino refinado.] O heterossexualismo é uma relação econômica, política e emocional particular entre homens e mulheres: o

s homens devem dominar as mulheres e as mulheres devem se subordinar aos homens de várias formas. [nota: Julien S. Murphy escreve: “A heterossexualidade é mais bem denominada heteroeconomia, pois ela se relaciona com a linguagem do intercâmbio, troca, barganha, leilão, compra e venda... A heterossexualidade é a economia da troca na qual uma estrutura de poder baseada em gênero continuamente se estabelece através da apropriação do partido desvalorizado em um sistema dual de gênero. Tal estabelecimento ocorre através de cada instância de ‘fazer um negócio’ no mercado do sexo.”] Como resultado, os homens presumem acesso às mulheres enquanto que as mulheres permanecem ligadas aos homens e são incapazes de manter uma comunidade de mulheres.


Nos EUA, as mulheres não podem aparecer em público sem que alguns homens se aproximem delas presumindo acesso às mesmas. De fato, muitas mulheres pensarão que algo está errado

se isso não acontecer. Uma mulher é simplesmente alguém a quem tal comportamento é apropriado. Quando uma mulher está acompanhada por um homem, no entanto, ela geralmente não é mais considerada “mercadoria disponível”. Como resultado, homens próximos a mulheres – pais, namorados, maridos, irmãos, acompanhantes, colegas – se tornam protetores (em teoria), inviabilizando aproximações de outros homens.


O valor da proteção especial para com as mulheres é prevalente na nossa

sociedade. Protetores interagem com as mulheres de maneiras que promovem a imagem da mulher como indefesa: homens abrem portas, puxam cadeiras, esperam que as mulheres se vistam de forma que interfiram na sua própria auto-proteção. E as mulheres aceitam isso como comportamento atencioso e elogioso, e vêem a si próprias como pessoas que necessitam de atenção e proteção especiais. [nota: Ao questionar o valor da proteção especial para mulheres, eu não estou dizendo que as mulheres nunca deveriam pedir ajuda. Isso é tolice. Eu estou falando sobre o ideal das mulheres como necessitadas de abrigo/suporte externo contínuo. O conceito de que crianças precisam de proteção especial é prevalente e eu contesto esse conceito quando ele

é utilizado para anular sua integridade “para seu próprio bem”. Mas, ao menos, a proteção para crianças envolve em teoria garantir que crianças [meninos] possam crescer e aprender a cuidar de si próprios. Ou seja, crianças [meninos] são protegidas até que tenham crescido e desenvolvido habilidades e proficiências que necessitam a fim de viver nesse mundo. Nenhuma expectativa como essa está incluída no ideal de proteção especial para mulheres: esse ideal não inclui a expectativa de que as mulheres estarão algum dia na posição de cuidar de si próprias (crescer).]


O que uma mulher se depara em um homem é ou um protetor ou

um predador, e os homens estabelecem suas identidades através de um ou outro desses papéis. Isso tem no mínimo cinco conseqüências. Primeiro, não pode haver protetores a menos que exista um perigo. Um homem não pode se identificar no papel de protetor a menos que exista alguém que precise de proteção. Então, é no interesse dos protetores que existam predadores. Segundo, para serem protegidas, as mulheres devem estar em perigo. Ao retratar as mulheres como desamparadas e indefesas, os homens retrata as mulheres como vítimas... e, portanto, como alvos.


Terceiro, uma mulher (ou garota) é vista como objeto da excitação masculina,

e, dessa forma, sua causa. Isso fica claro no caso do estupro: ela deve ter feito algo para tentá-lo – pobre criatura hormonal que ele é. Portanto, se as mulheres são seres que por natureza estão em perigo, obviamente, elas são seres naturalmente sedutores – elas ativamente atraem predadores. Quarto, para serem protegidas, as mulheres devem concordar em agir como os homens ditam às mulheres que devem agir: parecer femininas, provar que não são ameaçadoras, ficar em casa, ficar apenas com o protetor, desvalorizar suas ligações com outros mulheres e por aí vai.


Finalmente, quando as mulheres se desvirtuam do papel feminino se tornando

ativas e “culpadas” [nota: Na sua análise dos contos de fadas, Andrea Dworkin aponta que uma mulher ativa é retratada como má (a madrasta) e uma mulher boa está geralmente dormindo ou morta (Branca de Neve, Bela Adormecida).], é uma mera questão de lógica que os homens as retratem como vis e aumentem a violência física evidente contra elas a fim de reafirmar o status de vítima das mulheres. Por exemplo, à medida que a demanda pelos direitos das mulheres no EUA se tornou publicamente perceptível, a imagem de mulheres sozinhas como “putas” convidando ataque também se tornou prevalente. Uma mulher sozinha pedindo carona é vista não como alguém a ser protegida, mas como alguém que abdicou de seu direito à proteção e, portanto, como alguém que é um alvo para ataque. O grande aumento de pornografia – entretenimento produzido por e para homens sobre mulheres – é a resposta generalizada dos homens à demanda do movimento de libertação das mulheres por integridade, por autonomia e dignidade.


O que as feministas radicais expuseram através de toda a sua pesquisa sobre incesto (estupro da filha) e espancamento de esposas é que os protetores são também predadores. Obviamente, não todos os homens são espancadores de esposas ou namoradas, porém mais da metade daqueles que vivem com mulheres são. E, também, um número significativo de casa de família nos EUA abriga um homem “incestuoso”.


Embora homens possam demonstrar preocupação sobre o abuso de mulheres, eles possuem uma relação com o abuso diferente daquela das mulheres; suas preocupações não são as preocupações das mulheres. Por exemplo, frequentemente homens ficam furiosos com o fato de que uma mulher foi estuprada ou espancada por outro homem. Porém, isso seria ou o homem se posicionando em seu papel de pro

tetor – raramente, se alguma vez, lhe ocorre ensiná-la auto-defesa – ou um homem profundamente afetado por danos causados à sua “propriedade” por outro homem. E, enquanto que alguns homens sintam desprezo por homens que espancam ou estupram, Marilyn Frye sugere que é bem possível que o seu desprezo surja não do fato de que o abuso da mulher está ocorrendo, mas sim do fato de que o abusador ou estuprador precisa recorrer à força para obter aquilo que eles próprios obtém mais sutilmente pela arrogância.


A corrente disposição dos homens no poder de aprovar leis restringindo a pornografia é uma questão de homens tentando restabelecer a imagem assexuada e virginal de (algumas) mulheres que eles podem então proteger em suas casas. E eles estão usando em sua defesa mulheres da direita bem como feministas que parecem estar pedindo proteção, como mulheres direitas, ao invés de exigindo libertação. Os homens usam da violência quando as mulheres não prestam atenção a eles. Então, quando as mulheres pedem prote

ção, os homens podem encontrar motivações ao perseguir os predadores – particularmente aqueles de uma raça ou classe diferente.


Em outras palavras, a lógica da proteção é essencialmente a mesma da predação. Através da predação, os homens fazem coisas com as mulheres e contra as mulheres que as violam e minam sua integridade. No entanto, a proteção objetifica tanto quanto a predação. Para proteger mulheres, os homens fazem coisas com e contra ela; agindo “pelo próprio bem de uma mulher”, eles violam sua integridade e minam sua agência.


A proteção e a predação surgem da mesma ideologia de dominância masculina, no sentido de que é indiferente à sustentação bem-sucedida da dominação masculina qual das duas condições as mulheres aceitam. Portanto, Sonia Johnson afirma: “Nossa convicção de que se cessarmos de estudar e monitor

ar os homens e suas mais recentes loucuras, que se deixarmos de “arranhar” aterrorizadas e chutar, alternado com choramingos e apego exagerado – toda a nossa relação sadomasoquista doentia com os Mestres – eles ficarão furiosos e nos matarão é pura superstição. Com nossos olhares fixos neles, eles nos matam diariamente; com nossos olhares cravados nesses, eles ficam furiosos."


Algumas das primeiras feministas radicais afirmaram que mulheres são colonizadas. Vale a pena considerar essa afirmação. Aqueles que desejam dominar um grupo e que são bem-sucedidos obtêm controle através da violência. Essa demonstração de força, no entanto, requer esforços e recursos tremendos; então, colonizadores introduzem valores retratando a relação do colonizador dominante com o colonizado subordinado como natural e normal.


Uma das primeiras ações dos colonizadores após a conquista é controlar a linguag

em, trabalho esse frequentemente realizado por missionários cristãos. Sua missão é dar à linguagem uma forma escrita e então erguer escolas onde ela é ensinada aos nativos da terra. Aqui, novos valores são introduzidos: por exemplo, conceitos de “claro”/”iluminado” e “escuro”/”negro” com as conotações de “bom” e “mau”, respectivamente. Palavras para superiores e divindades então passam a carregar uma conotação “clara”, bem como aparecer no gênero masculino. Ademais, valores são incutidos os quais apóiam a apropriação colonial de recursos naturais, e negam os costumes ancestrais e independência econômica do colonizado. À medida que os colonizados são forçados a utilizar a linguagem e esquema conceitual dos colonizadores, eles podem começar a internalizar esses valores. Essa é a “salvação”, e os colonizadores aplicam a doutrina daquilo que chamaram Destino Manifesto ou “fardo do homem branco”.


A teoria do Destino Manifesto implica que os colonizadores estão trazendo civilização (a versão secular da salvação) aos “bárbaros” (“pagãos”). Os colonizadores retratam os colonizados como passivos, como desejando e precisando de proteção (dominação), como sendo cuidados “para seu próprio bem”. Qualquer um que resista à dominação será visto como anormal e atacado como um risco à sociedade (“civilização”) ou chamado de louco e isolado em nome da proteção (dele mesmo ou da sociedade).


Dessa forma, os colonizadores passam da predação – ataque e conquista – à proteção benevolente. Aqueles que foram colonizados são retratados como desamparados, infantis, passivos, e femininos; e os colonizadores se tornam governantes benevolentes, aceitando o fardo da administração “civilizada” de recursos (exploração).


Depois que a ordem social foi estabelecida, caso os colonizados comecem a r

esistir à proteção e benevolência, insistindo que eles preferem fazer tudo por si mesmos, independente das conseqüências imediatas, os colonizadores mais uma vez se tornarão predadores, aumentando a violência para convencer os colonizados de que eles precisam de proteção e que eles não conseguem sobreviver sem os colonizadores. Uma das frases atribuídas a Mahatma Gandhi no filme Gandhi de importância para esse argumento: “A fim de manter a benevolência e nos dominar, vocês devem nos humilhar”. Quando tudo falha, os homens partirão para a guerra para afirmar sua “masculinidade”: seu “direito” de conquistar e proteger mulheres e outros seres “femininos” (ou seja, qualquer um que eles possam dominar).


O objetivo da colonização é a apropriação de recursos estrangeiros. A colonização funciona tornando um povo inapto e economicamente dependente. Em seu livro sobre colonialismo, Como a Europa Subdesenvolveu a África, Walter Rodney argumenta que as sociedades africanas não teriam se tornado capitalistas sem o colonialismo branco. Sua tese é a de que a África estava progredindo economicamente de uma maneira distinta do desenvolvimento pré-capitalista até que os europeus chegaram para colonizar a África a subdesenvolvê-la. Restringindo o desenvolvimento da economia africana, e a reconstruindo para alcançar seus objetivos, os europeus destituíram os africanos de seus terras e recursos. Além disso, os europeus destituíram os africanos de suas habilidades econômicas autônomas, primariamente ao transformar o sistem

a educacional e ensinar os povos africanos a rejeitar o conhecimento de seus ancestrais. Essa desabilitação dos povos conquistados é crucial para a dominação, pois ela significa que os colonizados se tornam dependentes dos colonizadores para a sua sobrevivência. Na verdade, entretanto, são os colonizadores que não conseguem sobreviver – como colonizadores – sem os colonizados.


Bette S. Tallen sugere que, de forma semelhante, as mulheres foram desabilitadas/castradas sob o heterossexualismo, tornando-se economicamente dependentes dos homens, enquanto que os homens se apropriam dos seus recursos. Como Sonia Johnson aponta: “de acordo com estatísticas das Nações Unidas, embora as mulheres executem dois terços do trabalho no mundo, nós ganhamos apenas um décim


o da renda mundial e somos donas de apenas um centésimo das propriedades do mundo”. A desabilitação das mulheres varia dependendo de condições históricas e materiais específicas. Por exemplo, na sua análise da Grã-Bretanha pré-industrial do século XVII, Ann Oakley observa que mulheres assumiam muitas profissões quando separadas de seus maridos, ou quando viúvas. A revolução industrial mudou tudo isso e privou muitas mulheres de suas habilidades. Anteriormente a isso, durante os tempos da caça às bruxas, os homens europeus se apropriaram das habilidades de cura, parto, ensino das mulheres, e tentaram destruir as suas habilidades psíquicas. [nota: Atualmente, os homens estão tentando controlar as capacidades reprodutivas das mulheres ao controlar os órgãos reprodutivos femininos e processos femininos.] Como Alice Molloy escreve, “a suposta história da feitiçaria é simplesmente o processo pelo qual as mulheres foram separadas umas das outras e do seu potencial para sintetizar informação”. Em geral, muitas mulheres não mais possuem seus próprios projetos, elas perderam o acesso a suas próprias ferramentas. Como resultado, elas são coagidas a adotar uma ideologia de dependência dos homens.


O heterossexualismo possui certas similaridades com o colonialismo, particularmente na sua manutenção por via da força quando o paternalismo é rejeitado (ou seja, o aumento da predação dos homens quando as mulheres rejeitam sua proteção), e na sua representação da dominação como natural (os homens dominam as mulheres tão “naturalmente” quanto os colonizadores dominam os colonizados, e sem nenhuma noção de se próprios como estando a oprimir aqueles que dominam exceto durante os momentos de agressão evidente) e na desabilitação das mulheres (tornando-as inaptas de diversas formas a variadas atividades). E, da mesma que são os colonizadores que não conseguem sobreviver como colonizadores sem os colonizados, são os homens que não conseguem sobreviver como homens (protetores ou predadores) sem as mulheres.


Complementando a função de protetor/predador dos homens, está o conceito de “mulher”, particularmente como ele opera na sociedade mainstream dos EUA. Consideremos do que esse conceito carece. Ele carece (1) uma noção do poder feminino, (2) qualquer sugestão de que as mulheres como um grupo têm sido alvos da violência dos homens, (3) qualquer sugestão da resistência feminina, tanto coletiva quanto individual, à dominação e controle dos homens, e (4) qualquer noção do vínculo lésbico.


O conceito de “mulher” não inclui nenhuma noção verdadeira de poder feminino. Certamente, ele não inclui nenhuma noção de mulheres como forças conquistadoras e comandantes. De forma mais significativa, ele não inclui nenhuma noção de força e competência. Eu não estou negando que existem muitas mulheres fortes. E, quando as mulheres encorajam umas às outras em desafio à avaliação dominante, imagens significativas aparecem. Mas, com o passar do tempo sob o heterossexualismo, essas imagens tendem a ser modificadas por apelos à feminilidade ou são utilizadas contra as mulheres. Sem uma suficiente deferência aos homens, as mulheres perceberão que os conceitos de “vaca castradora”, “sapatão” ou similares são utilizados para mantê-las na linha.


Homens de um determinado grupo modificam parcialmente a “feminilidade” a fim de enfatizar a competência e a habilidade femininas quando eles realmente precisam de ajuda extra: durante guerras – Rosie the Riveter, por exemplo [nota: Ícone cultural americano da segunda grande guerra. Ela representa as milhares de mulheres que trabalharam em fábricas durante a produção de armamento militar para a Segunda Guerra Mundial.]; em fazendas pequenas; em movimentos revolucionários; em kibbutzim, onde o Estado é instável; em uma comunidade profundamente dividida sob opressão, etc. Porém, uma vez que o seu domínio está estabelecido de forma mais sólida, os homens retomam o estereótipo feminino (ao mesmo tempo que esperam que as mulheres executem a maior parte de seus trabalhos sem receber nenhum benefício – trabalhos domésticos, por exemplo).


No seu artigo sobre mulheres negras nas cidades, Pat Robinson relaciona a perda da auto-consciência e poder de um povo com a perda de suas divindades. Ela afirma, “para que um grupo seja controlado, é preciso que sejam tomados seus deuses, suas próprias reflexões acerca de si mesmos, e sua consciência interior”. Quando encontramos referências a deusas de qualquer cultura na cultura anglo-européia dominante, elas estão sendo raptadas ou estupradas, e/ou são mães. [nota: Existem muitas outras deusas além das deusas da fertilidade e da maternidade. Há deusas da caça, da tecelagem, da sabedoria, das mudanças, do inverno, da floresta, da terra, dos mortos, da justiça, do amor, da comida, do sol, do fogo, da escrita, da aurora, da vingança, da menarca, da lua, do mar, dos vulcões, e das bruxas e da mágica – citando apenas algumas. Ademais, há motivos para acreditar que deusas obesas, como a Vênus de Willendorf, representavam não maternidade, mas sim poder: as camadas de gordura eram camadas de poder.] De forma significativa, a única figura feminina presente no pensamento anglo-europeu é a Virgem Maria, resquício de uma antiga deusa, transformada em uma vítima-modelo de estupro, com a reputação de ter dito a um deus, “faça-se em mim segundo a tua vontade”.


Pat Robinson prossegue observando que, para controlar um povo, enquanto que um grupo deve tomar-lhes suas próprias reflexões acerca de si mesmos, ele deve primeiramente utilizar de força. (Isso, obviamente, é o processo inicial de colonização.) A segunda carência no conceito de “mulher” é uma noção de que a força é utilizada contra as mulheres como um grupo. A literatura feminista tem discutido o massacre das bruxas na Europa. Alguém poderia perguntar como uma destruição em massa poderia ser erradicada da consciência coletiva. Talvez ela tenha sido simplesmente suprimida. Porém, quando uma ordem social requer a exterminação de um determinado grupo, e essa exterminação é virtualmente bem-sucedida, a memória subseqüente desse processo pode ser erradicada ao ser renomeada. O massacre das bruxas na Europa por um período de mais de trezentos e cinqüenta anos sofreu essa renomeação. A caricatura das bruxas nos “ataca” anualmente na forma de um evento da mídia de massa nos EUA: o Halloween.


O uso da força ou violência contra as mulheres como um grupo não esteve limitada à Europa. Mary Daly, entre outras, procurou trazer à consciência feminista dos EUA o fato de que tal força foi e continua a ser usada contra as mulheres em todas as partes do mundo. E embora a prática dos assassinatos das viúvas indianas tenha sido reconhecida como um problema, isso ocorreu apenas porque os homens no poder recentemente o denominaram um problema. Da mesma forma, embora na China os pais tenham considerado que a atadura dos pés não é economicamente útil e, portanto, “imoral”, nossa memória e consciência do que levou a essa prática e por que ela foi perpetuada por tanto tempo está desaparecendo. Também, o infanticídio feminino assumiu sua posição como uma expressão de misoginia.


Uma vez que é inexistente a noção de que a violência tenha sido alguma vez direcionada às mulheres como um grupo, é difícil ter uma perspectiva da magnitude da força utilizada contra as mulheres atualmente. Enquanto que mulheres nos EUA podem ficar horrorizadas com o espectro da mutilação genital africana e as mortes das viúvas indianas, estudantes africanas (particularmente nigerianas) e indianas nas turmas para as quais leciono ficam não menos horrorizadas com a incidência de estupro e a quantidade de pornografia que constituem uma parte diária das vidas as mulheres nos EUA. Com exceção das feministas radicais, ninguém nos EUA percebe a incidência fenomenal de incesto (estupro da filha), espancamento da esposa, estupro, prostituição forçada e a ideologia da pornografia – retratada não apenas nas revistas masculinas, mas na televisão, outdoors, em supermercados, em escolas, e em geral em todo setor público e privado que uma mulher freqüenta – como uma forma de ataque orquestrado contra as mulheres. Não existe uma noção geral de que, como Sonia Johnson aponta, os homens tenham declarado guerra contra as mulheres; pelo contrário, esse ataque – já que os homens prestam atenção às mulheres – é nomeado “atração”, até mesmo “admiração”.


Em terceiro lugar, o conceito de “mulher” não inclui uma noção de resistência feminina – coletiva ou individual – à dominação masculina. Embora existam evidências de que amazonas tenham vivido na África do Norte, na China, na Anatólia (Turquia) e entre o Mar Negro e o Mar Cáspio [nota: Em 1979, o Chicago Sun-times, por exemplo, relatou a descoberta dos restos mortais de uma tribo de amazonas que viveu há 2500 anos na República da Moldávia. Arqueólogos soviéticos encontraram uma “mulher guerreira, seu cavalo de guerra, uma lança, brincos de ouro e outros adornos” em um terreno de enterro próximo à vila de Balabany.], as amazonas são tratadas repetidamente como uma piada ou algo do passado. Porém, como Helen Diner escreve: “Nas celebrações em honra dos mortos, Demóstenes, Lísias, Himérios, Isócrates e Aristides glorificam a vitória sobre as Amazonas como sendo mais importante do que aquela sobre os Persas ou qualquer outro feito na história... As guerras entre os Gregos e Persas foram guerras entre duas sociedades dominadas pelos homens. Na guerra contra as Amazonas, a questão era qual das duas formas de vida iria moldar a civilização européia à sua imagem.” De forma significativa, até mesmo feministas e feministas lésbicas evitam a idéia das amazonas, aparentemente por receio de parecerem alheias à realidade (ao consenso). Com algumas exceções notáveis, nós não estamos respondendo ao chamado de Maxine Feldman, “Mulheres amazonas, ergam-se.” Há pouca celebração das amazonas (embora nós estejamos começando a ouvir novamente sobre deusas e bruxas). Nós não reconhecemos as amazonas nem mesmo como defensoras simbólicas das mulheres – e isso em um tempo em que a violência dos homens contra as mulheres é evidente. Ao invés disso, até mesmo feministas radicais fazem pressão por maior proteção da polícia e do Estado. As amazonas – bem como as guerreiras femininas como aquelas nas sociedades dahomey ou nootka – simplesmente não se enquadram dentro do conceito de “mulher” da sociedade mainstream dos EUA.


Uma vez que não há nenhuma memória mitológica, muito menos histórica, da resistência feminina à dominação dos homens, atos isolados e individuais de resistência feminina são também tornados imperceptíveis como resistência, particularmente, como eu argumento abaixo, através do conceito de “feminilidade”. Uma “mulher” é alguém cuja identidade se dá através da sua aliança com um homem a tal ponto que qualquer mulher que resiste à violência masculina, aos avanços dos homens e ao acesso exigido pelos mesmos não é uma mulher de verdade.


O valor da “mulher”, portanto, exclui uma noção da presença, habilidade e poder femininos, de uma consciência de que violências têm sido e são perpetradas contra as mulheres como um grupo, e uma noção da resistência feminina à dominação masculina. Ele também exclui uma noção do vínculo lésbico. Adrienne Rich assumiu a tarefa de abordar (1) a ideologia “através da qual a experiência lésbica é entendida em uma gradação de desviante a abominável, ou simplesmente tornada invisível”; (2) “como e por que a escolha das mulheres por mulheres como companheiras amorosas, parceiras, colegas, amantes, comunidade, tem sido esmagada, invalidada, forçada ao acobertamento e a ser mascarada”; e (3) “a invisibilização em potencial ou total em uma gama de textos, incluindo aqueles da cultura feminista.” Como escreve Harriet Ellenberger: “Um tabu central no Patriarcado é o tabu contra mulheres unindo-se a mulheres – e, no entanto, essa união, aliança, ligação tornadas tabu têm ocorrido e continuam a ocorrer bem debaixo de seus narizes, e homens e a maioria das mulheres não pensam que elas são reais.”


O que o conceito de “mulher” inclui é igualmente significativo. Segundo a denominação masculinista das mulheres, uma “mulher” (1) é alguém que se identifica com homens, cuja identidade surge através de sua relação com o homem, (2) é alguém que se faz atraente aos homens, (3) é um objeto a ser conquistado pelos homens e (4) é uma reprodutora (de meninos).


A identidade de uma mulher é incorporada na sua relação com o homem: ela é antes de tudo e principalmente a mãe, esposa, amante, ou filha de algum homem e não de uma mulher. Como as Radicalesbians argumentaram em 1970: “Nós somos autênticas, legítimas, verdadeiras contanto que sejamos a propriedade de algum homem cujo nome carregamos. Ser uma mulher que não pertence a nenhum homem é ser invisível, patética, não-autêntica, não-verdadeira.” Uma mulher que não pertence a nenhum homem, ou não existe ou está tentando ser um homem. Ademais, uma “mulher” é responsável pela prestação de serviços sexuais aos homens. Se ela é boa ou má, qual o seu status ético, está baseado em sua disponibilidade sexual, preço e fidelidade aos homens. Em última análise, uma “mulher” é uma virgem ou uma puta – ou seja, ligada a um homem através do sexo.


Em segundo lugar, uma “mulher” é alguém que é atraente para os homens. Se ela não tenta se fazer atraente para os homens, considera-se que ela tem um problema sério. Na sociedade mainstream dos EUA, ser atraente significa que ela é caucasiana, de classe média-alta, praticamente anoréxica (isso é, doente), e jovem o bastante para não possuir rugas na sua face, embora ocasionalmente ela possa ser negra e “exótica”. Aquelas mulheres que não se enquadram nessas categorias, embora não sejam completamente descartas como mulheres, são, não obstante, forçadas a se sentir como substitutos ruins de uma mulher. [nota: Em outras partes do mundo, padrões diferentes podem se aplicar. Em alguns lugares, ser católica é essencial para a identidade da mulher, ou ser gorda, ou ser negra, não pálida. O modelo de “mulher” em termos da manifestação física tende a aderir aos valores dos homens no poder em um determinado local.] Além disso, uma “mulher” é alguém que deve ser protegida do que é mau (ou seja, “negro”) a menos que ela própria seja negra (ou seja, má) – nesse caso, outras mulheres devem ser protegidas dela. Quanto mais branca ela é, mais pura. Quanto mais negra ela é, mais perigosamente sexual. Novamente, ela é uma virgem ou uma puta – ou seja, branca ou negra.


Em terceiro lugar, uma “mulher” é alguém que deve ser conquistada por um homem. A ideologia da pornografia, de soft porn a snuff retrata uma mulher como um objeto (um receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser atacado e vencido), alguém que existe para ser dominada. Ela é caracterizada pelo seu desejo sexual, e ela é dominada através da violação – violão esta que ela deverá vir a desejar. A ideologia do romantismo (retratada popularmente nos romances de arlequim) é a mesma: uma mulher é um objeto (receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser protegido e seduzido), alguém que existe para ser conquistado. Ela é caracterizada por sua falta de desejo sexual – ela deve rejeitar as iniciativas sexuais (do homem) a fim de demonstrar o seu pudor; e, dessa forma, os homens sabem que quando ela diz “não”, na verdade ela quer dizer “sim”. Portanto ela, também, é dominada através da violação – violação da sua integridade –, violação esta que ela repentinamente começa a desejar. Tanto a pornografia quanto o romantismo nos dizem que uma mulher deve ser conquistada e dominada pela força da vontade do homem.


Finalmente, uma “mulher” é uma reprodutora. Uma mulher se realiza através da reprodução, sua possibilidade ética básica é a doação e o cuidado altruísta, e qualquer coisa que interfira com esse processo é suspeita. Além disso, nas ocasiões em que um povo está ameaçado porque os homens travam guerras, os homens ressaltam a reprodução excluindo todo o resto, e a supervisionam cuidadosamente. Nas sociedades anglo-européias, eurasiáticas e todas nas sociedades mainstream estadunidenses (central, do sul e norte), essa função não pode ser controlada por ela. Seu corpo não é seu para decidir sobre ele. A questão do aborto, por exemplo, como é abordada nos EUA, não é uma questão da mulher. Pois a questão diz respeito simplesmente a quais homens irão controlar os abortos das mulheres – o Estado ou homens individuais. E médicos exercendo sua preocupação paternalista pela ordem social esterilizam mulheres que consideram mães inadequadas, como mulheres negras pobres e porto-riquenhas. Uma “mulher” é uma reprodutora, e reprodutoras precisam de protetores que tomam as decisões sobre a reprodução, incluindo reconstrução genética. Ademais, obviamente, quando uma mulher procria com sucesso, o que ela procria é masculino – ou seja, alguém que perpetua a linhagem do seu marido.


Uma “mulher”, portanto, é um objeto sexual essencialmente submisso a e dependente dos homens, alguém cuja função é perpetuar a raça (enquanto protetores e predadores põem em prática seu projeto de destruí-la). Não, ninguém nasce uma “mulher”.


[nota: Não é acidental que justamente à medida que a exigência feminista por direitos novamente obteve reconhecimento do público, aqueles no poder desviaram a atenção ética para a biologia – dessa vez, a sociobiologia. Aqui, entre descrições alegadas “objetivas” do comportamento animal, E. O. Wilson afirma que é um “fenômeno quase universal que machos são dominantes sobre fêmeas entre os animais.” Em parte alguma Wilson defende essa afirmação; ao invés disso, ela aparece adquirir corpo à medida que ele simplesmente descreve os fatos. Por exemplo, ele utiliza a palavra “harém” para descrever uma comunidade de babuínos hamadryas na qual as fêmeas são aterrorizadas à submissão e lealdade por um macho ameaçador. Entretanto, ele também utiliza esse termo para descrever comunidades centradas em fêmeas tais como as ovelhas montanhesas. O rebanho de ovelhas montanhesas é centrado nas fêmeas, fêmeas “herdam” os espaços de outras fêmeas, e as fêmeas permitem que apenas alguns machos tenham contato com elas – e isso apenas durante a temporada de acasalamento. Porém, pelo uso de Wilson da palavra “harém”, a pessoa que está lendo fica com a impressão de que os machos dominam as fêmeas nessa comunidade.

De forma significativa, Wilson considera a sociedade dos babuínos hamadryas como um modelo de desenvolvimento supremo (de heterossexualismo) em vertebrados superiores. Ele descreve fêmeas ameaçadas e atacadas como “cônjuges” que foram “recrutadas”; e se elas escapam, de acordo com ele, elas “se desviaram”. Em outra parte do livro, Wilson denomina os estágios iniciais desse comportamento ameaçador do macho como sendo “proteção”.

Talvez, a linha de raciocínio mais reveladora de Wilson surja quando ele alterna a frase “ação receptora da fêmea” com a frase “comportamento submisso da fêmea.” Através dessa equivalência, ele implica que, simplesmente ao praticar heterossexo, as fêmeas são dominadas pelos machos. Wilson descreve as fêmeas que não praticam heterossexo como sendo “tias solteironas”, ou como sendo “anti-sociais” se elas tentam escapar (como o fizeram as babuínas-anubis fêmeas que, em um experimento, cientistas puseram em uma comunidade de hamadryas). Uma vez que fêmeas fazendo sexo com machos é “natural”, presume-se logicamente que a dominação do macho é “natural”. Em suma, sob o paradigma conceitual vigente (patriarcal), a penetração do macho equivale à dominação do macho.]


Eu desejo uma revolução moral.



[Traduzido de Lesbian Ethics - Sarah Lucia Hoagland]



terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Feminilidade, Heterossexualidade e a Síndrome de Estocolmo


Este texto propõe que a criação de vínculos das mulheres com homens, bem como a “feminilidade” e a heterossexualidade, são reações paradoxais às violências dos homens contra elas. Como já foi argumentado anteriormente em análises feministas, compreendemos que as mulheres sofrem coletivamente da Síndrome de Estocolmo – a criação de vínculos de um refém com seus captores – como resultado do seu medo constante de serem assediadas verbalmente, sexualmente e fisicamente, bem como restringidas economicamente pelos homens. Da mesma forma que captores que precisam matar ou ao menos ferir alguns reféns a fim de obter o que querem, os homens aterrorizam as mulheres para alcançarem o seu objetivo – a obtenção dos seus serviços sexuais, emocionais, domésticos e reprodutivos contínuos. Como reféns que se esforçam para acalmar seus captores a fim que de não sofram maiores violências e não sejam mortos, as mulheres se esforçam para agradar os homens, e dessa reação surge a “feminilidade”: a sua aparente subserviência, docilidade e auto-sacrifício. Dessa maneira, compreende-se que a feminilidade é um mecanismo adaptativo e um guia para as mulheres de como sobreviver aos abusos e ameaças dos homens, buscando conquistá-los. A teoria da Síndrome de Estocolmo Social aponta que esta se manifesta em todas as relações opressor-oprimido.

Embora essa análise seja emocionalmente perturbadora, ela pode proporcionar um melhor entendimento do mundo ao expor a relação entre fenômenos aparentemente díspares. Por exemplo, a teoria da Síndrome de Estocolmo pode explicar por que tantas mulheres rejeitam o próprio feminismo, que expõe os pontos de vista das mulheres e busca a libertação feminina; por que mulheres se esforçam tanto para se ligar aos homens quando seria muito mais fácil obter o que precisam de vínculos com outras mulheres; por que as mulheres amam os homens em face de sua violência contra nós.
A Síndrome de Estocolmo

Primeiramente, é importante ressaltar que, para que a Síndrome de Estocolmo seja desenvolvida, a vítima deve ter sua sobrevivência como seu objetivo principal.
Observando que a síndrome se desenvolve em um contexto de limitação da liberdade e desesperança, Soskis and Ochberg (1982) enfatizam que o objetivo do desenvolvimento da síndrome é criar esperança em uma situação onde, de outra forma, esta seria inexistente. Visto que o captor é a fonte dessa esperança, o refém sente-se grato a ele. Um consenso entre os especialistas é o de que o terror incutido no refém pelo captor cria sentimentos de absoluta dependência e desamparo nas vítimas.
A natureza aparentemente difundida desse fenômeno sugere que a criação de vínculo com o abusador (Síndrome de Estocolmo) é instintiva e desempenha uma função de sobrevivência para vítimas de abuso crônico.
A Síndrome de Estocolmo se desenvolve sob as seguintes condições:
1. A percepção de ameaça à sobrevivência da vítima, e a convicção de que o captor pode levar a ameaça a termo.
2. A percepção da impossibilidade de escapar.
3. A percepção por parte da vítima de alguma pequena gentileza do captor em um contexto de terror.
4. Isolamento de perspectivas que não as do captor.
Graham (1994) propôs estas quatro condições (percepção de ameaça à sobrevivência, gentileza, impossibilidade de escapar e isolamento) como precursoras da Síndrome de Estocolmo; um conjunto psicodinâmico para vítimas da síndrome; e sessenta e seis aspectos potenciais da Síndrome de Estocolmo, nove dos quais são vistos como indicadores-chave.
Vale notar que três dos quatro precursores da síndrome (a percepção de ameaça à sobrevivência, impossibilidade de escapar e gentileza) dizem respeito às percepções da vítima, e não às condições objetivas do ambiente em que ela se encontra.
Os seguintes indicadores-chave e distorções cognitivas se apresentam na Síndrome de Estocolmo como um contínuo em intensidades variáveis:
· A vítima apresenta sintomas traumáticos ou Síndrome do Stress Pós-Traumático.
· A vítima cria um vínculo com o captor.
· A vítima sente uma gratidão intensa por pequenas gentilezas demonstradas pelo captor.
· A vítima nega a violência e/ou as ameaças de violência do captor quando ocorrem, ou racionaliza a violência. A vítima nega sua raiva do captor a si própria, ao captor e a terceiros.
· A vítima demonstra hipersensibilidade às necessidades do captor e procura mantê-lo feliz (a fim de aumentar as chances do captor deixá-la viver). Para tal, a vítima tenta “entrar na mente” do captor.
· A vítima vê o mundo a partir da perspectiva do captor e vivencia sua identidade através dos olhos do captor.
· A vítima enxerga as autoridades (polícia tentando resgatá-la, por exemplo) como os “malvados”, e o captor como o “bonzinho”. Ela enxerga o captor como estando a protegê-la.
· A vítima tem dificuldades psicológicas em “deixar” o captor até mesmo depois de ser libertada.
· A vítima teme que o captor volte para “pegá-la” mesmo depois que ele tenha morrido ou esteja preso. Ela evita ter pensamentos desleais em relação ao captor temendo retaliação.
As distorções cognitivas desempenham três funções principais. Elas ajudam a evitar que a vítima seja dominada pelo terror, o que a tornaria incapaz de fazer o que é preciso para aumentar suas chances de sobreviver. A atribuição errônea de que a excitação e hipervigilância da vítima são devidas a amor e não terror cria um vínculo entre ela e seu abusador, bem como esperança para a vítima. Quando a vítima define a relação como uma de carinho, é fácil para o abusador fazer o mesmo. Obviamente, essas distorções cognitivas estão a serviço da sobrevivência: elas reduzem o terror, criam a esperança de escapar por via da conquista do abusador, e facilitam a criação de um vínculo entre o abusador e a vítima e, portanto, aumentam as chances de sobrevivência da vítima.
Devemos ressaltar que as pessoas que desenvolvem a síndrome não o fazem porque possuem um desvio de personalidade ou uma personalidade fraca, ou então porque foram abusadas anteriormente, ou porque foram socializadas dessa forma. A síndrome é uma reação universal a uma ameaça à sobrevivência sem perspectiva de libertação. Ademais, as vítimas com a síndrome não permanecem com o abusador porque criaram um vínculo com ele – pelo contrário, elas criam vínculo com o abusador porque não vêem nenhuma forma de escapar. Esse vínculo é particularmente provável de ser desenvolvido se a pessoa que proporciona o alívio emocional é o abusador, visto que “gentilezas” do abusador criam a esperança de que o abuso terminará.
Uma pessoa cuja sobrevivência está ameaçada percebe uma gentileza de forma diferente de uma pessoa cuja sobrevivência não está sob ameaça. Por exemplo, uma pequena gentileza – que não seria sequer percebida em condições de segurança – parece imensa sob condições de ameaça e/ou debilitação.
Com a percepção de gentileza e esperança, as vítimas negam quaisquer sentimentos de perigo, terror e raiva que o abusador cria nelas. Tal negação permite que a vítima crie um vínculo com o lado “positivo” do abusador.
As vítimas inconscientemente procuram ver o mundo da mesma forma que o abusador, pois apenas assim elas podem antecipar o que devem fazer para deixar o abusador feliz e para que ele seja “gentil” com elas.
As distorções cognitivas proporcionam para as vítimas uma interpretação acerca de seu próprio comportamento. O conteúdo das distorções traz um significado para as vítimas sobre seu comportamento, e as ajuda a acreditar que estão no controle.
Vários mecanismos também dificultam a separação psicológica do abusador após um período de cativeiro prolongado. Viver sem o abusador e, portanto, sem aquela consciência de si própria, impõe à vítima uma ameaça à sua sobrevivência psíquica. A perda de seu único “amigo” e da sua identidade como vista através dos olhos do abusador requer que a vítima se aventure pelo temível desconhecido, o que é difícil até mesmo para pessoas em ambientes normais. Isso é bem mais difícil para alguém cuja sobrevivência depende dos frágeis sentimentos de antecipação e “controle” produzidos por distorções cognitivas e os caprichos de um terrorista.
Os sentimentos da vítima de que o abusador pode retornar para “pegá-la” em algum momento, e de que dessa vez o abusador pode não ser tão bom (não deixá-la viver), também fazem com que a vítima se mantenha leal ao abusador por muito tempo depois que o cativeiro tenha terminado.
Visto que manter uma distorção cognitiva requer muito desgaste psicológico, o grande número de distorções utilizadas a fim de reduzir o terror não deve ser desconsiderado: esse número sugere que a redução do terror é muito importante para a sobrevivência e para lidar com abusos contínuos. Várias distorções também ajudam a vítima a acreditar que possui algum controle sobre o abuso.

A vítima com frequência racionaliza o abuso ao se culpar pelo ocorrido, acreditando que pode controlá-lo e também quando é abusada. Mas por que ela se culparia por seu abuso? Há pelo menos duas razões: (1) A fim de garantir a sobrevivência, a vítima adota a perspectiva do abusador, e esse acredita ter uma justificativa para abusá-la; (2) Se a vítima se culpa pelo ocorrido, ela então acredita que é capaz de cessar o abuso. Outra conseqüência dessa distorção é a de que a vítima gasta uma energia imensa para mudar ou “melhorar-se” a fim de que o abuso termine.
A Síndrome de Estocolmo Generalizada

A Síndrome de Estocolmo Generalizada resulta da ameaça, por parte de um ou mais indivíduos, à sobrevivência física ou psíquica da vítima, seguida da demonstração de gentilezas por outros indivíduos que são vistos como similares em alguns aspectos aos indivíduos ameaçadores.
Baseando-se na lei da generalização do estímulo, identificamos três situações nas quais a Síndrome de Estocolmo Generalizada pode se desenvolver: (1) Ameaças de violência contra a vítima são feitas por uma pessoa, e então gentilezas são demonstradas à vítima por outra pessoa que se assemelha de alguma forma à pessoa violenta. A vítima desenvolverá a Síndrome de Estocolmo Generalizada em relação à pessoa que demonstrou gentilezas. (2) Ameaças de violência contra um grupo de pessoas são feitas por outro grupo de pessoas, e então gentilezas são demonstradas a um dos membros do grupo vitimado por um ou mais indivíduos do grupo violento. Como resultado, esse membro do grupo vitimizado desenvolverá a Síndrome de Estocolmo Generalizada em relação a um ou mais indivíduos gentis do grupo violento. (3) Ameaças de violência contra um grupo de pessoas são feitas por outro grupo de pessoas, e quase todos os membros do grupo violento também demonstram algum tipo de gentileza a praticamente todos ou todos os membros do grupo vitimizado. Como resultado, espera-se que membros do grupo vitimizado desenvolvam a Síndrome de Estocolmo Generalizada em relação a todos os membros do grupo violento.
Enquanto que a Situação 1 pode ocorrer com qualquer um (qualquer pessoa pode ser seqüestrada na rua, por exemplo), as Situações 2 e 3 podem apenas ocorrer com membros de um grupo oprimido. A Síndrome de Estocolmo será mais intensa quando as Situações 1, 2 e 3 acontecerem simultaneamente.
Todas as relações de opressão e de poder desiguais precisam, no final das contas, basear-se na ameaça ou realidade de violência para se manter, e, acima de tudo, da sua naturalização e negação da potencialidade ameaçadora.
A história e realidade das mulheres ao redor do mundo não deixam dúvidas de que os homens são capazes de matar mulheres, de usar violência para controlá-las socialmente, e que os homens utilizarão os motivos mais banais para racionalizar suas violências.
Violências e Ameaças de Violência às Mulheres

Assédios
O termo “assédio sexual” é utilizado para referir a comportamentos masculinos que ocorrem em locais diferentes, mas que possuem funções semelhantes.
O assédio sexual no ambiente de trabalho pode ser definido como um comportamento masculino não-solicitado e não-recíproco que reforça o papel sexual de uma mulher sobre sua função como trabalhadora. Os comportamentos de assédio incluem: olhar insistentemente, fazer comentários a respeito ou tocar o corpo de uma mulher; solicitar o consentimento para comportamento sexual; propostas não-recíprocas reincidentes para encontros; exigência de intercurso sexual; e estupro (note que o assediador age a partir da suposição de que o corpo de uma mulher pertence a ele, não a ela). O que torna essa forma de assédio especialmente perversa é o fato de que é sustentada por um abuso de poder ou pela ameaça do mesmo, caso a mulher se recuse. Podemos identificar algumas “punições” utilizadas pelos homens que ajudam a garantir a complacência da mulher: difamação verbal da mulher; a não-cooperação da parte de colegas homens; avaliações de desempenho negativas; recusa de hora-extra; mudança de cargo prejudical; transferências ou troca de turnos, horas ou local de trabalho prejudiciais; recusa de treinamento; padrões de performance impraticáveis ou demissão.
Pesquisando em diversas fontes, Russell (1984) identificou as funções do assédio sexual, que incluem:
· A manutenção da prerrogativa masculina tradicional da iniciativa sexual.
· A expressão da hostilidade masculina em relação às mulheres.
· A compensação de homens pela impotência em suas próprias vidas através de controle sobre uma mulher.
· Afirmação do papel sexual da mulher sobre suas outras funções, e, através disso, a manutenção das mulheres em posição subordinada.
· A limitação do acesso das mulheres a cargos específicos, especialmente aqueles que não são “tradicionalmente” femininos.
Outra função do assédio é sexualizar a interação, comunicando às mulheres que somos, principalmente e antes de tudo, objetos para a satisfação sexual dos homens.
As funções acima mencionadas também se aplicam a locais que não os do ambiente de trabalho. O assediador na rua, por exemplo, comunica à mulher que as ruas pertencem a ele, não a ela; que ela não é livre para ir aonde bem entender e quando quiser; que se ela agir como se fosse livre, ele irá provar que a rua é sua ao abusar dela sexualmente. E, mesmo que o assédio não seja acompanhado de agressão física, “cantadas” são definidas como “agressões menores” (Bernard and Schlaffer 1983) e “pequenos estupros” (Medea and Thompson 1974).
Se uma mulher se dispusesse a tomar nota de todas as violências verbais direcionadas a ela durante sua vida – na forma de propagandas degradantes; piadas e insinuações depreciativas; exposição a conteúdo pornográfico; cantadas; comentários sexuais de homens conhecidos e colegas de trabalho; ligações telefônicas obscenas, etc. – ela ficaria surpresa com a quantidade de violência masculina “normal” que absorveu até mesmo sem sequer ser tocada fisicamente.
O Contínuo de Violências
O conceito de um contínuo de violências ritualizadas revela que a violência é uma realidade na vida de cada mulher. No entanto, as formas de violência mais freqüentes não são conceitualizadas como violentas, ou mesmo abusivas ou não-usuais pela maioria das mulheres. Infelizmente, elas são vistas como comportamentos masculinos normais, o que sugere que as mulheres conviveram por tanto tempo com a violência masculina que ela se tornou “imperceptível”. Todas as relações entre homens e mulheres são abusivas, algumas mais e outras menos. O conceito do contínuo insere essas formas de violência cotidianas em um contexto.
Conclusões acerca do contínuo de violência também corroboram a análise de MacKinnon das razões pelas quais estupradores raramente são condenados pela justiça. MacKinnon aponta que, uma vez que o estupro é definido como o uso de uma força maior do que aquela observada no comportamento sexual “normal” do homem, e porque a intensidade dessa força comumente utilizada é considerável e não leva em conta o ponto no qual as mulheres começam a se sentir violadas, o modo como o estupro é definido o torna praticamente “inexistente”. É também importante notar que apenas 1% dos estupradores são presos, e apenas 1% dos que são presos são condenados. Aqueles condenados não permanecem muito tempo na prisão até serem soltos. Devemos igualmente destacar que todos os homens se beneficiam das conseqüências das violências e das ameaças de violência de outros homens.
Podemos também chegar a uma conclusão importante acerca da violência masculina “normalizada” através do seguinte caso: cartas recebidas por Ellen Goodman, em resposta aos esforços do presidente Clinton para cessar a discriminação contra gays no exército, sugerem que homens sentem-se aterrorizados pelos tipos de violência aos quais eles submetem mulheres no dia-a-dia. Essa variedade de homofobia – medo de homossexuais – é, na verdade, medo de se tornar objeto de atenção sexual indesejada. Aparentemente, a maioria dos homens que escreveram para Goodman achava assustador até mesmo imaginar serem tratados da mesma forma que os homens rotineiramente tratam as mulheres.
A Impossibilidade de Escapar
Utilizando seu poder para criar normas e instituições sociais, os homens tornam a libertação das mulheres muito difícil. A seguir, alguns exemplos de como isso ocorre:
· Deus é retratado como sendo um homem, onipotente e superior, provendo legitimização “divina” às relações hierárquicas.
· Nossa história é masculina, pois as vidas das mulheres foram apagadas de todas as representações oficiais, ou então reescritas a partir da perspectiva dos homens.
· A baixa renda das mulheres em relação à dos homens pressiona as mulheres a casar ou permanecer casadas, tendo como objetivo sua sobrevivência econômica.
· As mulheres são incentivadas a amar e cuidar de maridos, pais, avôs e a desejar e cuidar de filhos e netos homens.
· O padrão de uma mulher atraente é definido como ser pequena e magra (ou seja, fraca), e vestir-se de forma que não possa se proteger (por exemplo, usar salto alto).
· Mulheres são encorajadas pela mídia e “especialistas” a servir sexualmente aos homens, de forma que a satisfação dos desejos sexuais dos mesmos é apresentada como uma conquista e um “empoderamento”, que provê uma falsa ilusão de poder.
· Homens recebem muito mais incentivo para fortalecer seus corpos através do esporte.
· Lesbianismo é visto como uma perversão; a decisão de não manter relações sexuais com homens e/ou afastar-se deles em face de suas violências não é considerada uma opção legítima para as mulheres.
· Uma criança sem um pai é vista como ilegítima, um bastardo. A opinião pública é a de que uma mulher solteira não deve ter filhos, que crianças precisam de um pai.
· As idéias e sentimentos dos homens são ouvidos e respeitados. As idéias das mulheres são vistas como fúteis ou ignoradas.
· Homens invadem o espaço físico das mulheres, tocando seus corpos até mesmo quando não são convidados ou permitidos.
Esses exemplos revelam a extensão da impossibilidade de cada mulher de escapar da dominação masculina.
Até mesmo mulheres que sentem que estão em casamentos e namoros “igualitários” não escapam da dominação masculina. De fato, os homens retêm o controle até quando “permitem” que suas companheiras tenham mais liberdade (para trabalhar fora, por exemplo), ou quando as “ajudam” nas tarefas domésticas. Eles decidem quanta liberdade as mulheres podem ter e o quanto eles estão dispostos a dar.
Note-se que em troca de segurança física de terceiros e “liberdades”, a mulher deve se submeter sexualmente ao seu “protetor”, e, muitas vezes, ter e cuidar de seus filhos. O fato é que as mulheres pagam, e pagam caro, pelas pequenas “gentilezas” que recebem dos homens, inclusive a gentileza de protegê-las da violência de outros homens. Também se pode argumentar que o comportamento protetor dos homens em relação às mulheres é, na verdade, a proteção daquilo que entendem como sua propriedade.
“Gentilezas”

Paradoxalmente, em contraponto às violências citadas anteriormente, os homens também demonstram algumas gentilezas às mulheres, criando a esperança de que talvez eles se importem realmente com elas, e parem de abusá-las. Isso possibilita que a Síndrome de Estocolmo Generalizada se desenvolva nas mulheres.
Sendo assim, embora aparentemente irônico, os homens que insistem em abrir a porta para uma mulher são frequentemente os mesmos que acreditam que uma mulher não deveria ser considerada para um cargo “importante”, ou que o seu salário inferior pode ser justificado por sua “falta de perseverança”. Analogamente, é muito provável que o homem que se casa com uma mulher e a “protege” da violência de terceiros seja o mesmo que a espanca e/ou coage a submeter-se sexualmente a ele.

Porém, dentre as gentilezas demonstradas, talvez a mais valorizada pelas mulheres seja o afeto e o amor de um homem. Frye (1983) oferece uma perspectiva interessante acerca do amor dos homens: “Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais [fode] exclusivamente com [ou submete sexualmente] o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens hétero reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram; respeitam; adoram e veneram; honram; quem eles imitam, idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam: estes são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres, o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura heterossexual masculina é homoafetiva; ela cultiva o amor pelos homens.”

Como observado, sexo na cultura supremacista masculina se configura como um ato de hostilidade e dominação, e não amor. Se o “ser fodido” comunicasse algo positivo para e sobre o “fodido”, os homens provavelmente fariam desse ato uma exclusividade sua. Visto que a sexualidade é socialmente construída para homens a partir de sua posição de dominação, a sexualidade masculina assume comumente a forma da degradação, humilhação, controle e/ou inflição de sofrimento nas mulheres a fim de que os homens gozem, ou até mesmo para ter uma experiência erótica e sexual. De fato, propomos que o ápice da representação da subordinação da mulher e dominação do homem, e também um dos momentos nos quais o vínculo da mulher com seus abusadores se torna mais evidente, ocorre durante o ato sexual heterossexual.

Se prover serviços sexuais e reprodutivos aos homens aparentemente os “acalma”, as mulheres continuarão a provê-los na esperança [inconsciente] de que possibilitem a criação de um vínculo com eles, que poderia servir para evitar [ainda mais] violências.
Isolamento

Uma mulher exposta às idéias, opiniões, atitudes, sentimentos e necessidades dos homens (e filhos), ao ponto da exclusão às das mulheres, é uma mulher ideologicamente isolada. De fato, o sistema de idéias supremacista masculino é amplamente difundido através das várias religiões do mundo, da psicanálise, da pornografia, sexologia, ciência, medicina e ciências sociais. Vale notar que um grupo constituído somente de mulheres pode se reunir, mas seus membros ainda permanecem ideologicamente isoladas se elas se comunicarem umas com as outras expressando as perspectivas dos homens, e não suas próprias.
Similarmente, uma mulher que tenha pouco ou nenhum contato com outras mulheres está fisicamente isolada. Hite (1976) oferece uma perspectiva interessante acerca da imposição de proibições de contato físico entre mulheres: "É deprimente e alienante não ser 'permitido' tocar ou estar em contato físico a não ser com um parceiro sexual – porque isso pode "levar" à conexão sexual! Especificamente em relação às mulheres, essa proibição de contato físico é opressiva e tem o efeito de separar as mulheres. A dinâmica funciona mais ou menos assim: você pode sentir um impulso repentino de beijar ou abraçar uma amiga – ou sentir desejos súbitos de maior proximidade ou contatos indeterminados – que precisa abafar ou reprimir. Mas quando um impulso natural é freado ou não é reconhecido conscientemente, pode provocar sensações de conflito, culpa ou ansiedade. A repressão pode então levar a sentimentos semiconscientes de rejeição, engendrando sentimentos de desconfiança e desgosto pela pessoa por quem se sentia originalmente atraída. Claro que isso é um fenômeno psicológico, e comumente se dá entre amigos, num nível sutil. O caso é que essa proibição de troca de contato físico (de qualquer tipo) entre mulheres leva ao crescimento do nível de hostilidade e distância entre elas."
Note-se que, uma vez que os homens ameaçam as mulheres com violências porque são mulheres, isto é, porque possuem corpos femininos, muitas mulheres depreciam seus próprios corpos e de outras mulheres, algumas delas ao ponto de odiá-los. Isso acaba por agravar ainda mais o isolamento entre as mulheres.
Resistência

É interessante notar que sintomas do que pode ser definido como reação pós-traumática têm sido repetidamente observados em mulheres como um grupo: sintomas físicos e psicossomáticos de outra forma inexplicáveis; comportamento dependente; sentimentos de desamparo e impotência; depressão; surtos raivosos ocasionais e aparentemente ilógicos; ambivalência nas relações com homens; e baixa auto-estima. Entendemos esses sinais como manifestações de desespero e protestos que seriam rechaçados caso fossem expressos em palavras.
De fato, a cultura masculina assegura que a expressão da raiva das mulheres não seja levada a sério – de forma que essa raiva não culmine em mudanças sociais – ao definir que a raiva nas mulheres é patológica.
Como feministas, estamos acostumadas a diversas e constantes acusações e ao fenômeno backlash devido a nossos pensamentos, questionamentos e ações. Dworkin (1985) oferece uma observação pungente: “O feminismo é odiado porque mulheres são odiadas. O anti-feminismo é uma expressão direta de misoginia; é a defesa política do ódio às mulheres. Isso se dá porque o feminismo é o movimento de libertação das mulheres.”
O movimento feminista proporciona às mulheres um contexto que legitimiza falar das violências em nossas vidas previamente invisibilizadas – o incesto, estupro, espancamento e assédio que moldam nossos dias. Revelar a natureza pervasiva dessas violências expõe a falsidade dos mitos patriarcais de que tais incidentes são isolados; cometidos apenas por alguns homens doentes; de que são apenas fantasias de mulheres delirantes, histéricas ou loucas; ou então de que são fantasias originárias dos desejos latentes das mulheres.
Como poderia ser esperado, precisamente ao manifestarmos nossa ética feminista, passamos a ouvir sobre a importância da tolerância. É preciso compreender que, quando as pessoas começam a falar sobre a importância da tolerância, altruísmo e auto-sacrifício, isso indica que elas percebem um conflito inerente de interesses entre os envolvidos. Dessa forma, a fim de resolver esse conflito, espera-se que aqueles que não possuem poder institucional sejam altruístas. Nesse sentido, o altruísmo e o auto-sacrifício são considerados “virtudes femininas”. A “feminilidade” é um conceito que faz a submissão feminina à dominação masculina parecer algo natural e normal. Assim sendo, as “virtudes femininas” possuem a função de preservar a relação de dominação e subordinação, facilitando o acesso daqueles que possuem poder institucional aos recursos daqueles que não o possuem. Ao repudiarmos a “feminilidade” ao mesmo tempo que retemos nossa identidade como mulheres, estamos rompendo com as normas culturais de subordinação feminina.
Uma tática patriarcal para silenciar uma mulher que se pronuncia é a de chamá-la de “femista”, lésbica ou feminista. Na concepção patriarcal, essas três alcunhas são “sinônimas” – todas se referem a mulheres que não dedicam suas vidas a apoiar e suprir as vontades dos homens.
Quanto ao termo “lésbica”: por que ele possui tanto poder? As lésbicas não priorizam as vontades dos homens. Às mulheres que não colocam os homens em primeiro lugar não são dadas as recompensas recebidas por mulheres que se “aliam” aos homens, incluindo alguma proteção da violência de todos eles. As mulheres sabem, consciente ou inconscientemente, que os homens utilizarão seu poder para ensinar às mulheres, com força bruta se necessário, a colocar os homens em primeiro lugar.
Conclusão

Nós apresentamos todas essas observações a fim de que as leitoras possam determinar por si próprias se os homens como um grupo demonstram verdadeiro amor às mulheres. Senhores “gentis” de escravos podem ter tornado a escravidão relativamente mais suportável para os escravos, porém isso não fez da instituição da escravidão algo menos hediondo. Também não acreditamos que, sob condições de dominação masculina, o conceito do “consentimento” feminino em relações desiguais seja significativo.

O conceito da Síndrome de Estocolmo Social nos permite romper com prévias conceitualizações acerca do amor das mulheres pelos homens ao explicar por que a maioria das mulheres sacrifica tanto de si própria nos relacionamentos com homens.
Se a necessidade das mulheres de criar vínculos com os homens surge das violências e ameaças de violência masculinas, parece-nos altamente questionável que essa necessidade, “desesperada” e obsessiva como ela se configura nas relações de mulheres com homens, estaria presente dentro de uma cultura igualitária e não-violenta. Em uma cultura assim, as mulheres não buscariam por vínculos a qualquer preço. Propomos, então, que a necessidade que mulheres sentem de criar vínculos com homens é fruto das ameaças de violência e violências dos homens vivenciadas pelas mulheres na sociedade supremacista masculina.
Paradoxalmente, embora as mulheres “amem” os homens em uma tentativa de sobreviver, através de sua dedicação aos homens, elas lhes proporcionam serviços (domésticos, emocionais, reprodutivos e sexuais) que lhes permitem perpetuar nossa opressão. As mulheres em geral se apegam ao sonho de que os homens se importam conosco e irão nos proteger de violências – esquecendo de quem partem – até mesmo enquanto nos oprimem.

Quanto mais vozes femininas se erguerem confirmando as violências dos homens, menos isoladas se sentirão as vítimas, e mais difícil será a minimização do problema pelo patriarcado. Da mesma forma, à medida que as mulheres, ao criarem vínculos entre si, receberem umas das outras o amor, a afirmação e a consideração necessários a qualquer ser humano, elas se tornarão cada vez menos dependentes das pequenas “gentilezas” dos homens para que sintam que possuem valor.
Temos a convicção de que as mulheres cessarão de amar os homens simplesmente para sobreviver; e, ao invés disso, buscarão o crescimento em conjunto através do amor – amor por elas mesmas e por outras mulheres. A proposta feminista lésbica da criação de igualdade no mundo privado do sexo e relacionamentos baseado no entendimento de que o pessoal é político pode ser a base da criação de um mundo público saudável no qual as mulheres podem viver. Acreditamos que esta seja a vanguarda da mudança social radical.

------

Baseado e adaptado a partir de Loving to Survive: Sexual Terror, Men's Violence, and Women's Lives - 
Dee L.R. Graham